quarta-feira, 20 de janeiro de 2016




Pastoreia as minhas ovelhas: o ministério cristão em perspectiva histórica

Alderi Souza de Matos

Nos últimos anos, os meios de comunicação têm noticiado com freqüência preocupante muitos casos de pastores e sacerdotes que têm sido infiéis no exercício de seu elevado encargo, envolvendo-se com delitos sexuais, desonestidade financeira e abuso de autoridade, entre outras situações. Muitas vezes, esses problemas têm trazido ruína para a vida pessoal dos envolvidos, vergonha para as suas congregações e descrédito para a igreja e para o evangelho. Essa triste realidade torna oportuna e necessária uma reflexão bíblica e histórica acerca do ministério cristão.

1. O ensinamento bíblico
A Escritura ensina que Deus é o supremo dirigente e orientador do seu povo. Algumas passagens significativas que apontam para isso são Gn 49.24; Sl 23.1-4; 80.1; 100.3 e Is 40.10-11. A mesma verdade é afirmada a respeito do Messias, o Cristo (ver Mq 5.4; Mt 2.6; Jo 10.11-16; Hb 13.20; 1 Pe 2.25; 5.4; Ap 7.17). Um exame desses textos mostrará que o termo mais usado é “pastor”: Deus ou Cristo é o supremo pastor do seu povo, estando incluídos nesse conceito as idéias de sustento, proteção, direção e disciplina, entre outras. Ao mesmo tempo, a Bíblia mostra que Deus (Cristo) houve por bem nomear representantes humanos para exercerem liderança e assistência espiritual no meio do seu povo. Na velha dispensação esses líderes foram principalmente os reis, os juízes, os sacerdotes e os profetas. Na nova dispensação, Deus entregou a sua igreja aos cuidados dos apóstolos e dos presbíteros ou bispos.

Assim como acontece com Deus Pai e Jesus Cristo, também no caso dos líderes humanos uma das figuras que melhor descrevem as suas funções e responsabilidades é a do pastoreio das ovelhas (ver Jo 21.15-17; At 20.28; Ef 4.11; 1 Pe 5.2). No Antigo Testamento, o grande protótipo do pastor é o rei Davi (2 Sm 5.2; Sl 78.70-72; Ez 34.23) e no Novo Testamento, o apóstolo Paulo (At 20.18-35; 2 Co 6.4-13; 1 Ts 2.1-12). Outro termo bíblico de grande relevância é “ministro” (diákonos, leitourgós, hyperétes), ou seja, aquele que serve. Os ministros são servos tanto de Deus quanto da igreja, o povo de Deus. Suas tarefas incluem pregar, alimentar, edificar, interceder, convencer, consolar, repreender, advertir e exortar os fiéis em sua vida cristã.

São freqüentes nas Escrituras as passagens que falam dos deveres e das qualificações dos pastores e ministros (Jr 3.15; At 6.4; Rm 12.7; 1 Co 4.1-2; 2 Co 4.1-10; 5.18-20; 1 Tm 3.1-7; 5.17-20; 2 Tm 4.5; Tt 1.5-9). Por outro lado, existem muitas advertências a respeito dos líderes relapsos e infiéis, “que se apascentam a si mesmos” e abandonam o rebanho do Senhor. Ver Jr 23.1-4; 50.6; Ez 34.1-31; Zc 11.5,17; 1 Pe 5.1-4. Segundo os preceitos bíblicos, o verdadeiro pastor é o líder revestido do Espírito Santo que amorosamente supervisiona, guia, ensina e adverte o povo de Deus.

2. Igreja antiga e medieval
A partir dos primeiros séculos da era cristã, ocorreram vários desdobramentos que dificultaram o fiel exercício do pastoreio cristão em moldes bíblicos. Entre eles podem ser citados o excesso de institucionalização da igreja, a crescente distinção entre clero e laicato, e a ênfase na vida monástica. Esses fenômenos criaram um progressivo distanciamento entre a hierarquia e o povo, fazendo com que os ministros tivessem dificuldade em desempenhar de modo eficaz as suas funções pastorais.

Todavia, as ações e os escritos de muitos líderes desse período dão testemunho da contínua relevância e necessidade do ofício pastoral. No segundo século, Policarpo de Esmirna, escrevendo aos filipenses, declarou: “Os presbíteros também devem ser compassivos, misericordiosos para com todos, reconduzindo aqueles que se desviam, visitando os enfermos, não negligenciando a viúva, o órfão e o pobre, mas sempre considerando o que é honroso aos olhos de Deus e dos homens, refreando toda ira, parcialidade e julgamento injusto, afastando-se de todo amor ao dinheiro, não pensando mal de alguém apressadamente, não sendo severo no juízo, sabendo que todos somos devedores ao pecado”. No terceiro século, Clemente de Alexandria e seu discípulo Orígenes também destacaram que os ministros são escolhidos para servir o Senhor, moderam as suas paixões, obedecem aos superiores, bem como ensinam e cuidam das ovelhas.

O grande bispo da igreja oriental João Crisóstomo (c. 347-407) não só foi o pregador mais eloqüente do seu tempo como destacou a importância da pregação no exercício do ministério cristão. Em um tratado acerca do sacerdócio, ele afirmou: “Há somente um método e meio de cura quando erramos, que é a poderosa aplicação da Palavra... com ela nós tanto despertamos a alma que dorme quanto a subjugamos quando se inflama; com ela cortamos os excessos, preenchemos as lacunas e realizamos todas as outras operações necessárias para a saúde da alma”.

Na igreja ocidental, o insigne Agostinho de Hipona (354-430) soube, como poucos, unir uma intensa reflexão teológica com um envolvimento prático no trabalho pastoral. Ele disse em uma de suas cartas: “Nesta vida, especialmente em nossos próprios dias, não há nada mais difícil, estafante e arriscado do que o ofício de bispo, sacerdote ou diácono; porém, nada é mais abençoado aos olhos de Deus, se o nosso serviço estiver de acordo com as ordens do nosso Capitão”.

Um marco importante na história da “cura de almas” foi o pontificado de Gregório Magno (590-604), cujo Livro de Regra Pastoral veio a ser um manual extremamente valioso para o clero secular durante toda a Idade Média. Todavia, continuaram a surgir obstáculos nessa tarefa: a evangelização superficial de grandes contingentes populacionais, em que um verniz de cristianismo recobria o paganismo subjacente; o aumento da riqueza e poder político da igreja, o que levou muitos papas, bispos e abades a negligenciarem o seu rebanho; as deficiências na formação dos sacerdotes, tantas vezes carentes de preparo ministerial e disciplina pessoal. Outros exemplos de preocupação pastoral nesse longo período são encontrados em grupos cristãos dissidentes como os donatistas, os valdenses e os albigenses, bem como entre os chamados pré-reformadores, notadamente John Wycliffe e Jan Hus. Este último disse em sua obra Sobre o Ofício Pastoral: “Existem duas coisas que pertencem ao status do pastor: a sua santidade e a integridade do seu ensino”.

3. A Reforma e o período moderno
A Reforma Protestante foi um movimento motivado em grande parte por preocupações pastorais, como ficou patente nos escritos e ações dos reformadores. Martinho Lutero (1483-1546) deu grande ênfase ao cuidado pastoral, que ele sempre relacionou diretamente com o ministério da Palavra. João Calvino (1509-1564) foi ainda além, dando imensa contribuição para o entendimento bíblico do ministério cristão. Ele devotou à igreja o quarto livro da sua Instituição da Religião Cristã, referindo-se a ela como a “mãe e mestra” dos fiéis, aquela que os gera através da pregação do evangelho e os educa na fé durante toda a sua vida. Em outro escrito, ele propôs para a igreja reformada de Genebra o quádruplo ofício de pastor, mestre, presbítero e diácono, destacando assim o valor da pregação, do ensino e do cuidado espiritual e material da comunidade cristã.

O reformador alemão Martin Bucer (1491-1551), sediado em Estrasburgo, foi chamado “o teólogo pastoral da Reforma”. Em sua obra O Reino de Cristo, ele identificou três deveres de um pastor: ensinar as Escrituras, ministrar os sacramentos e participar da disciplina eclesiástica. Um quarto dever era a assistência aos necessitados. Os anabatistas, em seu esforço de retornar aos padrões da igreja primitiva, também deram grande ênfase ao modelo pastoral espelhado no Novo Testamento, conforme exemplificado pelo trabalho e escritos de Menno Simons e seus colegas. Entre os fatores que contribuíram para essa revitalização da cura de almas nas igrejas da Reforma estava o retorno aos ensinos bíblicos sobre o ministério, a abolição das categorias de clero e leigos, a maior proximidade entre os líderes e os fiéis, e a vida coesa e participativa das comunidades evangélicas.

Dentre os movimentos subseqüentes, aquele que possivelmente produziu maiores frutos no âmbito pastoral foi o puritanismo inglês. Um nome de grande importância é o de Richard Baxter (1615-1691), cuja obra mais conhecida é O Pastor Reformado, escrito em 1656. O livro se fundamenta em Atos 20.28 para articular uma filosofia profundamente espiritual de ministério que aborda os labores, as motivações, as limitações e a dedicação dos pastores. Além de devotar-se zelosamente à pregação, todos os anos Baxter procurava encontrar-se pessoalmente com cada uma das 800 famílias da sua igreja para aconselhá-las e orar com elas, uma prática que transformou permanentemente a vidas dessas pessoas. Ele declarou: “Por amor a Cristo, e em prol da sua igreja e das almas imortais dos homens, eu rogo a todos os fiéis ministros de Cristo que se dediquem urgente e efetivamente a esse mister”.

No contexto intensamente bíblico das igrejas puritanas, o ensino e a prática do ministério genuíno se tornaram comuns, como ocorreu na obra de vultos como John Owen, Thomas Brooks, Richard Sibbes, Robert Bolton, Thomas Menton e Thomas Goodwin, entre outros. Nos Estados Unidos, a maior expressão dessa nobre tradição foi Jonathan Edwards (1703-1758), o notável pastor, teólogo e filósofo da Nova Inglaterra. Ele considerava uma grande bênção “o ministro que alegremente se dedica ao serviço do seu Senhor na obra do ministério, como uma obra na qual tem prazer, e também alegremente se une à sociedade dos santos sobre a qual foi colocado... e estes, por sua vez, alegremente o recebem como uma dádiva preciosa do seu Redentor glorificado”. Após a era puritana, destacaram-se por suas contribuições à teologia e à prática do ministério nomes como Charles Spurgeon, G. Campbell Morgan, Roland Allen, Benjamin Warfield e, mais recentemente, D. Martyn Lloyd-Jones, Jay Adams e John MacArthur, entre muitos outros.

Conclusão
Os dias em que vivemos são complexos e repletos de desafios. Nas áreas política, empresarial e institucional existe a expectativa de que os líderes sejam ao mesmo tempo íntegros, competentes e dinâmicos. Essa expectativa também se verifica no meio religioso, mas com um diferencial. Os ministros devem prestar contas de seus atos não somente aos seus paroquianos, mas principalmente àquele que os vocacionou e capacitou para o seu nobre ofício – o próprio Deus. Numa época em que o trabalho pastoral se torna uma atividade entre outras, em que os ministros correm o risco de serem meros “profissionais do púlpito”, em que motivações secundárias ou menores buscam a supremacia no coração dos pastores, vale a pena ouvir a exortação de Paulo ao seu colega mais jovem: “Cumpre cabalmente o teu ministério” (2 Tm 4.5).

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