quarta-feira, 20 de janeiro de 2016








CALVINO, O EXEGETA DA REFORMA

Alderi Souza de Matos

1. Definição de Termos

      a. Exegese: a análise e explanação de um texto, geralmente em conexão com uma interpretação detalhada, científica (“crítica”). Distingue-se de “hermenêutica” no sentido de que esta se refere aos princípios de interpretação, enquanto que a exegese trata da aplicação desses princípios ao texto bíblico.

      b. Hermenêutica: o estudo dos princípios e métodos de interpretação. O termo muitas vezes refere-se a uma perspectiva teológica específica que pode nortear a interpretação (por exemplo: hermenêutica da libertação, feminista, reformada).



2. A Obra Exegética de Calvino

      · A vasta produção literária de Calvino preenche 59 grossos volumes da coleção conhecida como Corpus Reformatorum. As Institutas em suas várias edições ocupam quatro volumes. Cinco ou seis volumes contêm os escritos ocasionais e outros onze a correspondência de Calvino.

      · Do restante, nada menos de 35 correspondem a suas obras bíblicas, que incluem os comentários, provavelmente baseados em preleções, sobre todo o Novo Testamento, exceto 2 e 3 João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías. Mickelsen: “Calvino era basicamente um intérprete bíblico e somente em segundo lugar um teólogo” (Interpreting the Bible, p. 39).

      · A estes devem acrescentar-se transcrições palavra por palavra de suas preleções sobre todos os Profetas e dos sermões em que fez a exposição, versículo por versículo, de Gênesis, Deuteronômio, Juízes, 1 e 2 Samuel, Jó, quase todos os Profetas, alguns Salmos, parte de uma harmonia dos Evangelhos, Atos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, 1 e 2 Tessalonicenses, as Epístolas Pastorais e Hebreus.

      · As Institutas e os comentários bíblicos de Calvino complementam-se de maneira interessante. Tradicionalmente, a exposição do Novo Testamento havia seguido duas abordagens interpretativas: a exegese de palavras e expressões ou a interpretação do sentido geral das passagens. A primeira era preferida pelos expositores escolásticos e a segunda pelos escritores do renascimento. Neste último caso, os temas mais importantes de uma passagem eram extraídos e desenvolvidos como artigos separados. Esses temas eram chamados de “tópicos” ou “lugares” (topoiloci). Aqueles extraídos de um livro inteiro ou de toda a Bíblia eram denominados “loci communes” (lugares comuns).

      · Assim sendo, Calvino escreveu seus comentários seguindo o antigo método da exposição direta do texto com sua exegese concomitante, e reuniu os loci communes em uma obra separada, a segunda edição e edições subseqüentes das Institutas. Ele diz o seguinte nas suas palavras introdutórias ao leitor na edição de 1539:

      ... se no futuro eu publicar quaisquer comentários sobre as Escrituras, irei sempre condensá-los e mantê-los breves, pois não precisarei fazer longas discussões doutrinárias ou desviar-me para loci communes. Dessa maneira o leitor piedoso evitará muito incômodo e tédio, contanto que se acerque [dos comentários] previamente munido do conhecimento da presente obra como um instrumento necessário (CO 1, 255/6).

      · Desse modo, as Institutas estão fortemente relacionadas não somente com as Escrituras, mas também com os comentários de Calvino sobre as Escrituras. A propósito, a estrutura das Institutas segue o Credo dos Apóstolos, sendo os loci communes agrupados em quatro livros:

      Livro I – Sobre o Conhecimento de Deus o Criador

      Livro II – Sobre o Conhecimento de Deus o Redentor em Cristo, que foi primeiro revelado aos pais sob a Lei e depois também a nós no Evangelho.

      Livro III – Sobre o Modo como a Graça de Cristo deve ser recebida; que Frutos nos vem dela e que Efeitos resultam.

      Livro IV – Sobre os Meios e Auxílios externos pelos quais Deus nos convida para a Sociedade de Cristo e nos mantém nela.

      · A primeira edição das Institutas surgiu em 1536; edições ampliadas vieram a lume em 1539 e 1541 e alterações mais profundas a partir de 1543, mas a obra só atingiu sua forma final em 1559. Durante essas duas décadas, Calvino esteve imerso na exposição e pregação da Bíblia. Ele também gastou um tempo considerável estudando os grandes teólogos da igreja, como Agostinho, Ambrósio, Cipriano, Teodoreto, João Crisóstomo e outros.

      · John Rogerson sobre Calvino: “Seus comentários, escritos com erudição, sensibilidade e clareza, foram as mais elevadas contribuições nesse gênero feitas por qualquer líder da reforma” (Rogerson, Rowland e Lindars, The Study and Use of the Bible, 87). Gerald Bray: “Calvino pode ser chamado ‘o pai da moderna erudição bíblica’” (Biblical Interpretation, p. 177).

      · Philip Schaff: “Calvino foi um gênio exegético de primeira grandeza. Seus comentários são incomparáveis quanto a sua originalidade, profundidade, perspicácia, equilíbrio e valor permanente... Reuss, o principal editor das obras [de Calvino] e ele mesmo um eminente erudito bíblico, diz que Calvino foi ‘acima de qualquer dúvida o maior exegeta do século dezesseis” (Kaiser e Silva, An Introduction to Biblical Hermeneutics, p.253).

      · Cronologia dos comentários: Novo Testamento: 1539-51 – epístolas (Romanos, 1539; I-II Coríntios, 1546-47); 1553-57 – Evangelho de João, Atos, harmonia dos sinóticos; 1557 – revisão da edição completa das epístolas paulinas. Velho Testamento: 1550 em diante, especialmente após 1557. Os comentários do A.T. são em grande parte transcrições de preleções feitas na escola de teologia (Calvino foi um preletor bíblico durante toda a sua estadia em Genebra). Além das preleções e sermões, as Escrituras também eram expostas nas “congregações”, reuniões semanais em que os pastores se revezavam na interpretação dos livros da Bíblia.



      3. Pressupostos

      · A autoridade das Escrituras. A prova última da autoridade das Escrituras é que o próprio Deus se dirige a nós nos documentos bíblicos (Inst., 1.7.1). Na Bíblia, os crentes têm um encontro pessoal com Deus que os convence da verdade da mensagem nela contida.

      · A necessidade de iluminação. O testemunho interno do Espírito Santo: “a palavra nunca terá crédito nos corações humanos até que seja confirmada pelo testemunho interno do Espírito” (1.7.4). A fé nas Escrituras e a interpretação das Escrituras caminham juntas. Portanto, o exegeta deve aproximar-se das Escrituras com reverência e humildade.

      · O objetivo da interpretação. A edificação da igreja. A exegese deve produzir fruto e ser útil. Carta a um pastor de Orléans: “Em todos os seus estudos, tome cuidado para não ficar meramente buscando entretenimento, mas trabalhe com o propósito de ser útil à igreja de Cristo”. A exegese não pode ser alienada, mas envolve participação direta na vida e nas lutas da igreja.

      · A Escritura é sua própria intérprete: essa era uma expressão favorita de Calvino. A aplicação deste pressuposto era facilitada pelo grande conhecimento bíblico do próprio Calvino e sua memória privilegiada.

      · O alto conceito de Calvino sobre a inspiração não o fez ignorar os fenômenos do texto. Ele observou as diferenças de estilo dos autores humanos e concluiu, por exemplo, que II Pedro não foi escrita pelo autor de I Pedro. Ele também reconheceu certas imprecisões em questões menores, como em Mt 23.35 (Zacarias, filho de Baraquias x 2 Cr 24:20-22: filho de Joiada; ver Zc 1.1), Mt 27.9 (profeta Jeremias; devia ser Zacarias, ver Zc 11.12-13), At 7.16 (Abraão; devia ser Jacó; ver Gn 23.16; Js 24.32).



      4. Princípios hermenêuticos

      · A correspondência de Calvino mostra que ele estudou cuidadosamente os diferentes métodos de interpretação utilizados por Lutero, Melanchton, Bucer, Zuínglio, Ecolampádio e outros. Ele expressou suas idéias sobre a tarefa do exegeta bíblico em uma carta que escreveu a Simão Gryneus em 1539, como dedicatória do seu comentário de Romanos.

      · Brevidade e clareza: o traço distintivo do método exegético de Calvino é a “brevidade lúcida” (brevitas et facilitas), ou seja, a busca do sentido “comum” ou “simples” do texto (Neuser, Calvinus Sacrae Scripturae Professor, p. 94-95). Nesse aspecto, Calvino nutria grande admiração pelo pregador e expositor bíblico do quarto século João Crisóstomo (+407). A tarefa do expositor é aclarar a intenção do autor bíblico, e não obscurecê-la com comentários prolixos, refutação de opiniões divergentes, etc. (como Bucer e Melanchton). O objetivo maior é a edificação dos fiéis e da igreja.

      · A intenção do autor: na carta a Gryneus, Calvino diz que o maior dever do exegeta é tornar compreensível o sentido do autor que ele está explicando. Isso envolvia a investigação da linguagem distintiva de cada autor (e assim um sólido conhecimento das línguas originais), bem como das circunstâncias históricas, geográficas e sociais (a situação do autor). Por exemplo, ao comentar os salmos, ele analisava cuidadosamente as ocasiões e instituições cúlticas que estariam por detrás dos mesmos. Calvino também dá muita importância ao estudo do contexto: muitos problemas exegéticos podem ser explicados quando o intérprete investiga o contexto de uma passagem. Interpretação histórico-gramatical.

      · Ênfase no sentido literal: como Lutero e outros reformadores, Calvino insistiu no sentido literal da Escritura como a única base adequada para a exegese. Em seu comentário de Gálatas 4.21-26, ele afirma que introduzir sentidos múltiplos na Escritura (alegorização) é um “artifício de Satanás”. Na introdução ao seu comentário de Romanos, ele adverte: “É uma audácia próxima do sacrilégio usar as Escrituras ao nosso bel-prazer e jogá-las como uma bola de tênis, o que muitos já fizeram... A primeira tarefa do intérprete é deixar o autor dizer o que ele diz, ao invés de atribuir-lhe o que achamos que deveria dizer”. Esse princípio levava Calvino a ser muito cauteloso quanto às interpretações cristológicas do Velho Testamento. Bons exemplos são seus comentários de Gênesis 3.15 (luta entre Satanás e a humanidade) e do Salmo 2 (referência a Davi). Ele entendia que as referências messiânicas nos Salmos são em geral tipológicas antes que proféticas.

      · Rejeição do literalismo: Calvino preocupa-se em ir além das palavras bíblicas literais para encontrar a verdadeira intenção do autor divino. Ele faz isso, por exemplo, em relação aos Dez Mandamentos: “Em minha opinião, é melhor considerar qual é a ocasião da lei e qual é o seu objetivo; para cada mandamento precisamos considerar porque ele nos foi dado” (Inst., 2.8.8). Por exemplo, o sexto mandamento, “Não matarás”, requer qualificações. Existem ocasiões em que matar não é errado e a própria Bíblia fornece muitos exemplos disso. Um literalismo estrito nesse caso seria infiel ao sentido geral da Bíblia como um todo. Um problema especial consiste na linguagem metafórica, como ocorre nas palavras de instituição da Ceia do Senhor. Na metáfora contida na expressão “Isto é o meu corpo”, o “nome do sinal visível é colocado lado a lado com a coisa que é representada no sinal” (Inst., 4.17.21).

      · Interpretação cristológica: a interpretação cristológica da Escritura deve ser histórica bem como teológica. Neste aspecto, Calvino rompeu com a interpretação espiritual do passado e até mesmo com a idéia de Lutero de ver “Cristo em toda a Escritura”. Para ele, Cristo era o cumprimento do Velho Testamento e o tema do Novo Testamento, mas isso não significava que todo versículo necessariamente continha alguma referência oculta a ele. A abordagem de Calvino é mais sutil: o intérprete deve relacionar cada passagem da Escritura com Cristo, qualquer que seja o sentido primário da mesma.

      · Apelo à tradição exegética da igreja: os reformadores opuseram-se à autoridade da tradição e da igreja, mas somente até onde essa autoridade usurpava a autoridade da Escritura. Calvino não teve igual no século dezesseis como expositor bíblico, mas não tinha a ilusão de que poderia ignorar mil e quinhentos anos de tradição exegética e aproximar-se da Bíblia isento da influência do passado. Ele valoriza de maneira especial a interpretação bíblica da igreja antiga (Crisóstomo, Agostinho, etc.).

      · Utilização do conhecimento secular: Calvino era um homem da renascença e teve aprimorada educação em humanidades. Conhecia os melhores métodos de análise filológica e literária disponíveis na sua época. Colocou sua erudição clássica a serviço da interpretação bíblica e da reflexão teológica. Ele assim se expressou nas Institutas: “Os homens que sorveram ou apenas provaram as artes liberais, com o seu auxílio penetram muito mais profundamente nos segredos da sabedoria divina” (1.5.2). “Se o Senhor quer que sejamos auxiliados pela física, dialética, matemática e outras disciplinas semelhantes, pela obra e ministério dos ímpios, utilizemos essa assistência” (2.2.16). O que permite a Calvino usar o conhecimento secular é o seu conceito de graça comum. O Espírito de Deus é a fonte de toda verdade e por isso não devemos desprezá-la, não importa onde surja. Portanto, ele fez uso de todos os campos de estudo existentes na época: linguística hebraica e grega, geografia, estudos clássicos, medicina e filosofia.

      · Exegese, teologia e pregação: a interpretação bíblica de Calvino passa por três fases distintas, mas correlatas – exegese (comentários), dogmática (Institutas) e pregação (sermões). A exegese é logicamente a primeira; a dogmática representa a estrutura na qual a exegese deve ser interpretada; e a pregação é a aplicação da exegese e da dogmática à vida diária.

      · Exegese e teologia: Calvino é um notável exemplo da integração que deve haver entre a teologia e a interpretação bíblica. Moisés Silva opina que tanto a exposição bíblica quanto a teologia sistemática de Calvino são excepcionais porque estão relacionadas entre si (An Introduction to Biblical Hermeneutics, p. 260)Nesse sentido, é especialmente importante o conceito da soberania de Deus. O senso de deslumbramento de Calvino pela majestade e pelo poder de Deus sobre toda a criação permeia toda a sua teologia de maneira profunda.

      · Calvino e Lutero como exegetas: (a) Calvino é um comentarista muito mais sistemático; seu objetivo é elucidar o texto bíblico, geralmente versículo por versículo. (b) Ele é mais erudito que Lutero, tanto no seu uso do hebraico quanto em sua acuidade teológica. (c) Está mais disposto a esclarecer detalhes do texto com o auxílio do conhecimento secular. (d) Maneja melhor a literatura, vendo-a à luz da filosofia e da ciência natural. (Rogerson, Rowland e Lindars, The Study and Use of the Bible, p. 87).


Referências

      · Gerald Bray, Biblical Interpretation: Past and Present. Downers Grove, Illinois; Leicester, Inglaterra: Intervarsity, 1996.

      · Walter C. Kaiser e Moisés Silva, An Introduction to Biblical Hermeneutics: The Search for Meaning. Grand Rapids: Zondervan, 1994.

      · Hans-Joachim Kraus, “Calvin’s Exegetical Principles”, Interpretation 31, nº 1 (Jan 1977): 8-18.

      · A.B. Mickelsen, Interpreting the BibleGrand Rapids: Eerdmans, 1963.

      · Wilhelm H. Neuser, ed., Calvinus Sacrae Scripturae Professor: Calvin as Confessor of Holy Scripture. Grand Rapids: Eerdmans, 1994.

      · T.H.L. Parker, Calvin: An Introduction to his Thought. Louisville, KY: Westminster/John Knox, 1995.

      · John Rogerson, Christopher Rowland e Barnabas Lindars, The Study and Use of the Bible. Basingstoke, Inglaterra; Grand Rapids: Marshall Pickering/ Eerdmans, 1988. Vol. 2 in Paul Avis, ed., The History of Christian Theology.

      · Schwöbel, “Calvin”, in A Dictionary of Biblical Interpretation, eds. R.J. Coggins e J.L. Houlden. Londres, Filadélfia: SCM/Trinity, 1990.   

      · Moisés Silva, Has the Church Misread the Bible? The History of Interpretation in the Light of Current Issues. Grand Rapids: Zondervan, 1987.
          
      · Henry A. Virkler, Hermeneutics: Principles and Processes of Biblical Interpretation. Grand Rapids: Baker, 1981.

Outras Obras

      P.R. Ackroyd et al., eds., The Cambridge History of the Bible, 3 vols. Cambridge University Press, 1963-70.

      Daniel P. Fuller, “Interpretation, History of”, International Standard Bible Encyclopedia2.863-74.

      Richard C. Gamble, “Brevitas et Facilitas: Toward an Understanding of Calvin’s Hermeneutic”, Westminster Theological Journal 47 (1985): 1-17. “Exposition and Method in Calvin”, WTJ 49 (1987): 153-65.

      Robert M. Grant, A Short History of the Interpretation of the Bible. Filadélfia: Fortress, 1984.

      K. Grobel, “Interpretation, History and Principles of”, Interpreter’s Dictionary of the Bible 2:718-24, vol. supl., 436-56.

      T.H.L. Parker, “Calvin the Biblical Expositor”, The Churchman 78 (1964): 23-31.

      ______, “Calvin the Exegete: Change and Development”, in Calvinus Ecclesia Doctor, ed. W. Neuser (Kampen: Kok, 1978).

      ______, Calvin’s New Testament Commentaries (G. Rapids: Eerdmans, 1971).

      ______, Calvin’s Old Testament Commentaries (G. Rapids: Eerdmans, 1986).

      ______, Calvin’s Preaching (Grand Rapids: Eerdmans, 1992).

      Thomas F. Torrance, The Hermeneutics of John Calvin. 
Edimburgo: Scottish Academic Press, 1988.

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