segunda-feira, 18 de janeiro de 2016


Entrevista Com Augustus Nicodemus 

 

 

Por AUGUSTUS NICODEMUS


 

Revista ECLÉSIA: Ateus são aqueles que não crêem em Deus. De que maneira pode existir um "ateísmo cristão", justamente o título de seu último livro?
NICODEMUS: O apóstolo Paulo se refere àqueles que professam conhecer a Deus e que, entretanto, o negam por suas obras (Tito 1:16). Chamo de ateísmo cristão a negação de que Deus interfere, age e atua na realidade humana, negação esta feita por pessoas que se professam cristãs e que argumentam usando a terminologia cristã. Na verdade, isto nada mais é que o antigo deísmo, a idéia de que Deus existe mas que não interfere na realidade humana. O deísmo foi a religião dos antigos liberais e continua, ligeiramente modificada, sendo a teologia dos novos liberais. Para mim, admitir a existência de Deus mas negar sua presença na história e na experiência humana é a mesma coisa, ao final, que o ateísmo – só que com capa de cristianismo.

Revista ECLÉSIA: Há quem acredite que o Brasil esteja experimentando um avivamento por causa do crescimento dos evangélicos. Mas o senhor diz que a Igreja sofre sérias ameaças. Isso não é uma contradição?
NICODEMUS: No meu caso não é uma contradição porque eu nunca afirmei que o Brasil está experimentando um avivamento espiritual. O que constato é o crescimento nas duas últimas décadas das seitas neopentecostais, que a mídia costuma confundir com os evangélicos. Eu sei que há pessoas que são verdadeiramente crentes no Senhor Jesus nesse meio, em que pesem os ensinamentos e práticas estranhos ao Evangelho. Todavia, isto não diminui a ameaça que o movimento representa para a igreja cristã.

Revista ECLÉSIA: Ainda falando sobre o crescimento evangélico, o segmento mais conhecido hoje é neopentecostal. E, talvez pelo aparente sucesso, talvez pelo poder midiático, tem influenciado com práticas e estilos de culto denominações pentecostais e históricas. Esse processo não é irreversível?
NICODEMUS: Não sei se é irreversível. Este crescimento vem diminuindo nos últimos anos, pois a proposta das igrejas neopentecostais não se sustenta por muito tempo. Cedo ou tarde as promessas da teologia da prosperidade se mostram vazias, gerando uma multidão de decepcionados que vão engordar as fileiras dos desigrejados. Percebe-se, também, a crescente separação e distanciamento destes movimentos neopentecostais do pentecostalismo clássico e das igrejas históricas, o que é muito bom, pois deixa a diferença entre nós e eles mais clara. Infelizmente, a influência das práticas neopentecostais nas igrejas históricas tem feito e continuará a fazer, por algum tempo, considerável estrago. A culpa, em parte, é das lideranças que não prepararam o povo adequadamente para enfrentar estes erros. Mas, a responsabilidade é principalmente dos pastores de igrejas históricas que traindo e abandonando os compromissos que fizeram por ocasião de sua consagração e ordenação, adotaram eles mesmos estas práticas estranhas ao cristianismo histórico, no afã de crescer, ganhar adeptos e aumentar o seu ministério. E não podemos esquecer que se as seitas neopentecostais têm um grande volume de adeptos, isto se deve também ao fato de que tem muita gente interessada em Deus por motivos errados, como saúde, prosperidade e sucesso, deixando a razão maior para trás, que é a glória do próprio Deus.

ECLÉSIA: Os últimos números das pesquisas apontam para um aumento grande do número de pessoas que acreditam em Deus mas não tem uma religião específica. Ou, pelo menos, que não estão em uma denominação evangélica. Provavelmente, porque já estiveram e saíram. Quem é o maior culpado por isso: os abusos cometidos pelos líderes ou o triunfalismo pregado dos púlpitos e que, na prática, não alcança resultados?
NICODEMUS: Acho que as duas coisas. E devemos nos humilhar e nos penitenciar diante de Deus por isto. Mas eu ainda acrescentaria uma terceira razão, que é a tendência do coração humano de não se sujeitar à disciplina, liderança, governo espiritual e a seguir normas e regras. As igrejas cristãs – pelos menos as sérias – são organizadas de acordo com o padrão bíblico, têm uma liderança espiritual constituída e seguem normas encontradas na Palavra de Deus. Obviamente nem todo mundo tem disposição para fazer parte de uma comunidade onde ficará sujeito a cobranças, questionamentos e perguntas sobre sua vida individual, sobre seu comportamento, hábitos e decisões. Ou seja, muita gente que se considera evangélica não quer a responsabilidade inerente à membresia de uma igreja séria. Em resumo, o crescimento do número dos desigrejados se dá tanto pela falha da igreja organizada quanto pela rebeldia de boa parte dos próprios desigrejados.

ECLÉSIA: Em seu último livro, o senhor aborda temas como o fato do crente ficar ou não doente e a prática de expulsar o diabo. Particularmente, o senhor já viu casos escabrosos ou até esteve presente diante de práticas estranhas e que o motivaram a escrever sobre isso? Pode falar sobre elas?
NICODEMUS: Sobre crentes ficarem doentes, não creio que precisemos dar evidências e provas disto. É claro que ficam. E nem sempre é falta de fé, resultado de um pecado específico ou demonização. Já orei por gente que ficou boa e também por gente que morreu em seguida. É Deus quem cura, quando quer e se quiser. Já me deparei com diversos casos de possessão demoníaca em meu ministério. Alguns deles, verifiquei em seguida, não se tratavam realmente de possessão. Mas pelo menos dois deles só consigo explicar como sendo casos reais de possessão demoníaca. Acredito que a possessão demoníaca é uma realidade em nossos dias, mas não acredito que tudo que se considera como tal, nas igrejas neopentecostais, é de fato possessão. Há muita mistificação e engano, muita confusão de sintomas de doenças mentais e distúrbios psicológicos com demonização.

ECLÉSIA: Mas batalha espiritual é um assunto bíblico. Só que o senhor já disse que esse conceito foi contaminado pelo paganismo que se infiltrou no meio eclesiástico. Como assim?
NICODEMUS: Sem dúvida, a batalha espiritual é um assunto totalmente bíblico. Paulo nos diz em Efésios 6 que nossa luta real é contra os principados e potestades, as forças espirituais do mal nos lugares celestiais. Não tenho dúvidas quanto a isto. Satanás é real e suas tentações e seu poder são reais. Ele está presente e ativo no planeta Terra, como já disse alguém. O problema não é este, mas sim como enfrentamos Satanás e suas forças. O moderno movimento de batalha espiritual ensina conceitos e práticas que não encontram fundamentação bíblica, como quebra de maldições, espíritos territoriais, oração de guerra, mapeamento espiritual, cobertura espiritual, demônios associados com doenças específicas, associação dos nomes das divindades pagãs do umbandismo com espíritos malignos determinados, - enfim, a lista é grande. Procuramos em vão no relato bíblico da vida e obra de Jesus e dos apóstolos evidências de que eles faziam mapeamento espiritual, demarcação de território, amarração de potestades, quebra de maldições. Para mim, a igreja não deve adotar práticas que não sejam claramente apoiadas pela Escritura. A fonte de autoridade para estas práticas no movimento de batalha espiritual não é a Bíblia, mas declarações de pessoas endemoninhadas, sonhos, visões, palavras proféticas, supostas revelações e outras fontes subjetivas que acabam tomando o lugar da Palavra de Deus na vida do crente e da igreja. Isso tudo abre a porta para a entrada de crendices, misticismo e paganismo na igreja.

ECLÉSIA: Por outro lado, o senhor diz que não é totalmente contra o Natal. Mas essa festa não tem origens e práticas pagãs, como a própria árvore e as luzinhas? Não seria uma contradição?
NICODEMUS: As festividades natalinas modernas com árvore de natal, luzinhas, Papai Noel, ceia com peru, troca de presentes e onde nem se menciona o nome de Jesus Cristo são claramente uma prática não cristã. A origem desta prática realmente é pagã, mas não a idéia de celebramos o nascimento do nosso Salvador Jesus Cristo. Se os anjos se alegraram com o nascimento dele, formando um coral celestial para entoar louvores a Deus, se os pastores e os magos foram adorá-lo e se a encarnação de Deus Filho é considerada na Bíblia um evento crucial da história da salvação – sem o qual não haveria sua morte e a sua ressurreição – vejo como perfeitamente cristão celebrar o nascimento do Salvador. Como não sabemos a data exata de seu nascimento, seguimos a antiga convenção cristã de fazê-lo no dia 25 de dezembro. Poderia ser em outro dia qualquer. Natal não é dia santo.

ECLÉSIA: As igrejas por aqui geralmente são acusadas de copiar tudo dos Estados Unidos. De bom e de ruim. Inclusive, práticas espirituais, demonizando a cultura nacional. De que maneira podemos forjar uma espiritualidade bíblica e ao mesmo tempo brasileira?
NICODEMUS: É um equívoco demonizar a cultura brasileira – ou outra qualquer – como um todo. Como calvinista, creio na graça comum, isto é, que Deus abençoa as pessoas com habilidade e capacidade para fazerem arte, música, cultura, descobertas científicas, mesmo aquelas que não o conhecem e até o negam. Portanto, encontraremos em qualquer cultura coisas boas que refletem a bondade do Criador. Além disto, a verdadeira espiritualidade não tem nacionalidade e transcende as barreiras geográficas e étnicas. Os profetas e os apóstolos eram judeus e viveram numa cultura antiga que já nem existe mais, o Antigo Oriente. Todavia, a espiritualidade deles é a base da nossa. A verdadeira espiritualidade consiste em viver neste mundo de acordo com a vontade de Deus revelada nas Escrituras. E isto nos Estados Unidos, no Brasil ou na China. É claro que o homem espiritual haverá de adaptar-se à sua cultura, mas a base e a fonte de sua espiritualidade sempre será a pessoa de Jesus Cristo, conforme revelada nas Escrituras. Isto não significa negar que se copia muita coisa aqui, não só dos Estados Unidos, mas da Coréia, por exemplo. Todavia, se o que os crentes americanos estão fazendo é biblicamente correto e saudável, qual é o problema em aprender com eles ou com crentes da China e da África? Tem muito nacionalismo irracional no meio evangélico. Tem gente que fala de teologia brasileira, louvor brasileiro, espiritualidade brasileira como se fosse possível isolar este ente etéreo chamado "brasilianidade" da cultura global em que vivemos hoje. As próprias culturas em que a Bíblia nasceu e foi escrita eram misturadas. Copiavam-se práticas, costumes e tradições. Não vejo nenhum problema em aproveitar o que cristãos de outros países fazem certo, desde que o critério final seja a coerência e a conformidade com as Escrituras.

ECLÉSIA: Qual a maior ameaça à Igreja brasileira: as inovações neopentecostais, o liberalismo, o fundamentalismo, o teísmo aberto ou as novas tentativas de reforma?
NICODEMUS: Cada um destes movimentos representa uma ameaça em seus próprios termos. Eu diria que o liberalismo teológico e as inovações pentecostais são as mais perigosas pelo volume de adeptos e pelo radicalismo. O teísmo aberto é um movimento praticamente defunto no Brasil, pois não encontrou respaldo quer entre os calvinistas, quer entre os arminianos, em razão de negar uma doutrina preciosa para ambos, que é a onisciência de Deus.

ECLÉSIA: Ultimamente os emergentes e grupos que combatem a aridez e os modismos de grandes denominações aparecem como opção para uma nova espiritualidade. O que o senhor pensa dela?
NICODEMUS: Existem vários tipos de emergentes. Há um movimento dentro dos emergentes que se identifica com o liberalismo teológico e sobre este movimento a minha opinião é a mesma que tenho sobre os liberais. Mas há um movimento emergente que quer manter o compromisso com as doutrinas centrais da Palavra de Deus, com a pregação bíblica, com uma vida pautada pelas normas cristãs de amor ao próximo e santidade de vida. E ao mesmo tempo, querem ser relevantes para sua geração. Eles defendem um culto diferente dos cultos das igrejas tradicionais, mais informal, com música contemporânea e uma ordem litúrgica menos elaborada. Há inclusive um movimento vigoroso de reapreciação pela teologia e práxis da Reforma protestante, que vem exercendo muita influência nas igrejas históricas e nas pentecostais. Eu vejo com muita simpatia este movimento.

ECLÉSIA: Falando em debate e em polêmica, recentemente houve uma discussão pelas redes sociais entre o bispo Edir Macedo, líder da IURD, e a cantora e pastora batista Ana Paula Valadão sobre as manifestações do Espírito Santo. Um dizia que só cai no chão quem é endemoninhado. A outra, que alguém que recebe a unção de Deus pode cair. Como o senhor vê esse debate?
NICODEMUS: Não acompanhei esta discussão, mas estou familiarizado com o assunto. Estive a muitos anos na Igreja do Aeroporto, em Toronto, da Vineyard, onde começou o movimento da "bênção de Toronto," que é onde nasceu esta prática de "cair no Espírito." Estranhei bastante o que vi lá, pois ao comparar as quedas com os relatos de quedas na Bíblica ficava evidente o contraste. Na Bíblia, as pessoas que caíram diante da presença de Deus caíram sobre seus rostos e joelhos, não de costas. Caíram diante do descobrimento do seu próprio pecado, da santidade de Deus ou da glória de Cristo. Em nenhuma destas ocorrências as quedas aconteceram por causa de unção com óleo ou imposição de mãos dos profetas, de Jesus e dos apóstolos. E não encontramos em lugar nenhum da Bíblia qualquer orientação para os crentes sobre este assunto. No caso dos endemoninhados, também não há qualquer registro de gente endemoninhada caindo quando Jesus ou os apóstolos lhes impuseram as mãos. Sempre, o que havia, era a expulsão imediata dos demônios, sem muita conversa. Assim, se eu for tomar a Bíblia como referencial, eu diria que não temos como demonstrar biblicamente que pessoas cheias do Espírito caem no chão e nem que endemoninhados caem no chão na hora do exorcismo.

ECLÉSIA: Já se falou muito em dentes de ouro, risada santa e até em adoração extravagante. Que modismos estão afetando atualmente a Igreja e com quais crentes e lideranças devem ficar atentos?
NICODEMUS: A lista é grande demais para caber aqui numa entrevista destas... sugiro que consultem o blog do Pr. Renato Vargens, que documenta em detalhes estes modismos.

ECLÉSIA: Em partes tudo isso também não é culpa das lideranças e da formação que elas recebem nas faculdades teológicas? Ou da falta de formação para quem não estuda? Um de seus textos, no último livro, questiona por que tantos seminaristas perdem a fé...
NICODEMUS: Sem dúvida. Quando um pastor desconhece a história da igreja, a história das doutrinas, a teologia bíblica e teologia sistemática, quando ele não tem nem mesmo as noções mais básicas de grego e de hebraico, quando lhe falta o conhecimento dos grandes credos e confissões da igreja cristã, desconhece as polêmicas teológicas e a obra dos grandes vultos da Igreja Cristã, sua tendência será levar avante o seu ministério na base do improviso, da intuição e do pragmatismo. Ele vai usar como modelo aquelas instituições religiosas que aparentemente conseguiram sucesso em arrebanhar pessoas. Pior ainda, se nos seminários e institutos bíblicos ele teve professores liberais, sairá no mínimo um pastor confuso, incerto e sem convicção sobre nada – e portanto aberto a todo tipo de prática e crença que lhe garanta a posição e o sustento.

ECLÉSIA: Há pouco tempo, o país enfrentou o debate sobre o ensino do criacionismo nas escolas. Depois, a discussão foi sobre o ensino religioso. Como chanceler de uma das mais importantes universidades confessionais brasileiras, de que forma vê a questão?
NICODEMUS: Esse assunto é muito complexo. A Constituição brasileira e a Lei de Diretrizes e Bases reconhecem a educação confessional, que é aquela feita por instituições de ensino que se orientam por uma ideologia específica. Portanto, instituições de ensino confessionais têm liberdade de ensinar sua ideologia desde que cumpram satisfatoriamente os requisitos e parâmetros curriculares determinados pelo MEC. Não creio que se deva abolir o ensino do evolucionismo nas escolas confessionais. Mas creio que ao lado do evolucionismo se deveria mostrar que existe outra opinião, defendida por cientistas renomados e sérios, quanto à questão da origem das espécies, como, por exemplo, a teoria do Design Inteligente. Isto cumpriria perfeitamente o ideal de pluralidade que se espera de uma escola e de uma universidade. Como está, apenas uma posição é ensinada, como se a mesma não fosse contestada por muitos. É uma ilusão pensar que o ensino pode ser feito de maneira isenta, neutra ou cientificamente laica. Não existe isto. Toda educação parte de uma visão de mundo pré-concebida. Se não for uma cosmovisão religiosa, será uma materialista, humanista, naturalista ateísta, marxista... Portanto, o ensino confessional cristão tem legitimidade. Sobre o ensino religioso, acho que num país onde cerca de 90% da população diz crer em Deus e estar afiliada a alguma religião por si só já é argumento suficiente para não se ignorar a dimensão religiosa e o papel importante que ela desempenha na vida dos brasileiros.

ECLÉSIA: Universidades confessionais têm enfrentado várias crises nos últimos tempos. Tome-se como exemplo a PUC de São Paulo e a Ulbra do Rio Grande do Sul. Não estão administrando o ensino como tomam conta das igrejas? Como o senhor avalia a situação das escolas confessionais e o que o Mackenzie tem a ensinar sobre o assunto?
NICODEMUS: Eu diria apenas que o setor educacional privado no Brasil, como um todo, atravessa profundas dificuldades administrativas, financeiras e estruturais. As instituições confessionais de ensino, inclusive as universidades confessionais também são atingidas, algumas mais, outras menos. Os desafios são muito grandes.

ECLÉSIA: Recentemente, o Mackenzie foi alvo de protestos por parte de ativistas homossexuais por conta de um texto em seu site que criticava o PLC 122/06. Como o senhor vê esse debate sobre o casamento gay no Brasil? Os evangélicos não correm sérios riscos de serem submetidos a uma mordaça?
NICODEMUS: É preciso esclarecer os fatos. O que foi publicado no site do Mackenzie nada mais era que o posicionamento da Igreja Presbiteriana do Brasil tomado em 2007 pelo seu Supremo Concílio. Estava no site do Mackenzie desde aquele ano, pois a IPB é a Associada Vitalícia da instituição e suas decisões precisam ser conhecidas. É claro que toda violência feita a um homossexual deve ser punida. Quem agride gays deve ser preso e responder a processo. Aliás, quem agride qualquer cidadão brasileiro, independentemente de sua escolha sexual, deve ser preso. É lamentável quando jovens saem às ruas de noite para espancar gays e travestis. Não podemos concordar jamais com este tipo de atitude – da mesma forma que não podemos concordar com agressões feitas a qualquer pessoa. Acredito que as pessoas têm o direito de escolher o tipo de vida que desejam levar e que não deveriam agredir nem afrontar quem pensa diferente. A Constituição Brasileira garante o direito à liberdade de consciência, religião e expressão. Assim sendo, não posso apoiar nenhum projeto que intente dar direitos especiais a um grupo de brasileiros em detrimento da liberdade de consciência, expressão e religião de outros. Sobre o casamento gay, é claro que sou contra, pois além do conceito ser contrário às minhas convicções cristãs, considero-o um fator de risco para a família. Quanto à mordaça sobre os evangélicos, é bem possível que venha a acontecer, mas a Igreja cristã nunca deixou de cumprir o seu papel de anunciar o perdão de Deus aos pecadores arrependidos mesmo em sociedades hostis, como no primeiro século da era cristã, sob o Império Romano. Lá não tinha mordaça, mas leão, cruz e espada para os dissidentes.

ECLÉSIA: Há pouco, quem esteve no Mackenzie foi John Piper, participando de debates que tiveram sua presença e a de Russel Shedd. Nos últimos anos, a universidade tem sido palco de congressos e grandes eventos que atraíram importantes nomes da fé cristã. De que maneira isso ajuda no amadurecimento da fé evangélica no país?
NICODEMUS: A realização destes eventos só é possível por causa do apoio da alta direção do Mackenzie, que é composta de cristãos sérios e comprometidos com a qualidade da educação e a visão cristã de mundo. A visão deles, da qual sou um dos executores como Chanceler, é de que o Mackenzie deve contribuir para a sociedade não somente oferecendo ensino de alta qualidade, como vem fazendo há décadas, mas também mostrando que o Cristianismo não exige que abandonemos a intelectualidade, a erudição, a cultura e o bom senso. Por isto, trazemos nomes de peso mundial para nos falar. Para o ano que vem (2012) planejamos trazer Dra. Nancy Pearcey, renomada historiadora da ciência, Dr. W. Lane Craig, um dos apologetas cristãos mais conhecidos hoje, que atua junto às grandes universidades do mundo, Dr. Michael Behe, cientista e biólogo renomado e considerado o pai da teoria do Design Inteligente, além do Pr. Paul Washer, um dos pregadores mais conhecidos dentre aqueles cujo ministério é voltado para os jovens.

ECLÉSIA: O senhor é um entusiasta da internet. Seus textos no blog já viraram até livro. A Igreja tem aproveitado bem a tecnologia e as redes sociais? Ou o mundo virtual é mais uma ameaça à fé do real?
NICODEMUS: A igreja tem aproveitado bem a tecnologia e as redes sociais. Os evangélicos têm presença marcante nas mídias sociais. Mas, é claro, esta participação pode melhorar, com a inserção de material mais sólido, sério, e que tenha potencial para formar esta nova geração. Portanto, não vejo a tecnologia como uma ameaça – desde que corretamente usada, como tudo o mais na vida.

ECLÉSIA: O senhor é reverendo presbiteriano mas tem trânsito entre várias correntes e denominações. Durante muito tempo, a Igreja Presbiteriana foi criticada por ser fechada. Isso está mudando?
NICODEMUS: No que tange à minha denominação, não creio que a Igreja Presbiteriana do Brasil tenha sido fechada no passado. Os presbiterianos sempre foram abertos para os irmãos de denominações reconhecidamente evangélicas. Não rebatizamos quem vem destas denominações e servimos a Ceia a todos os que são membros de igrejas evangélicas. Não temos proibição de convidarmos pregadores de outras denominações para nossos púlpitos e nem de participarmos de eventos conjuntos com eles. O que realmente não concordamos é com aqueles que se dizem cristãos mas negam a inerrância da Palavra de Deus, os milagres da Bíblia, a ressurreição de Cristo e sua morte vicária. Também queremos distância das práticas neopentecostais e das seitas. Quanto à minha pessoa, se tenho algum trânsito em outros setores evangélicos isto talvez se deva à principal ênfase do meu ministério, que é pregar expositivamente a Palavra de Deus. Evangélicos de todas as denominações amam a Bíblia e gostam de ouvir explicações sobre ela feitas com simplicidade e clareza.

ECLÉSIA: Sua trajetória pessoal é pontuada por uma sólida formação acadêmica. Sempre que isso acontece, surge o questionamento: como conciliar conhecimento com uma fé viva e dinâmica. Qual é seu segredo? O que diria para jovens ministros que estão começando a carreira e não querem deixar de crer diante de uma Igreja com tantos problemas?
NICODEMUS: Conhecimento e fé viva não são opostos e nem inimigos. Essa dicotomia é resultado da visão iluminista e racionalista de mundo que prevalece na cultura ocidental desde o século dezoito, que estabeleceu a razão como o critério final da realidade. Antes disto, este conflito estava ausente na vida dos grandes cientistas que nos deram a moderna ciência e que eram, na maior parte, cristãos. Todo conhecimento pressupõe um princípio unificador que serve de orientação e sustentação. A crença na existência de um Deus criador, que é amor e justiça, santidade e misericórdia, que fez o mundo segundo princípios e leis e criou o ser humano à sua imagem, funciona perfeitamente como princípio unificador para o conhecimento. Sendo assim, meu conselho aos jovens pastores é que cultivem a sua mente com a mesma energia com que cultivam a sua vida devocional. Estudem, pesquisem, escrevam, perguntem, discutam. Procurem não somente uma sólida formação espiritual como também bíblico-teológica-geral.

Fonte:

Alguns Fatos Notáveis sobre Charles Spurgeon




1. Spurgeon leu "O Peregrino" aos seis anos de idade e o releu 100 vezes após isso.

2. A coleção impressa de seus sermões (63 volumes) tem tantas palavras quanto a Enciclopédia Britânica, todavia, ele pregou suas 140 palavras por minuto à partir de uma única folha de anotações, preparada na noite anterior.

3. Uma mulher foi convertida lendo uma simples página de um sermão de Spurgeon que ela encontrou enrolada ao redor da manteiga que ela tinha comprado.

4. Antes dos 20 anos de idade, Spurgeon pregou 600 vezes.

5. Aos 19 anos de idade, a Igreja de New Park Street o convidou para um teste de seis meses. Eu aceitaria somente um teste de três meses pois, "Eu não queria me tornar um obstáculo". Quando ele chegou, em 1854, a congregação tinha 232 membros. Trinta e oito anos depois o total era de 5.317 com outros 9.149 que tinham sido membros (mudanças, mortes, etc.).
6. Spurgeon disse dos políticos: "Eu tenho ouvido, 'Não traga a religião para a política'. É precisamente para este lugar que ela deveria ser trazida e colocada ali na frente de todos os homens como um candelabro".

7. Spurgeon certa vez se dirigiu a uma audiência de 23.654 pessoas sem, é claro, um microfone ou uma amplificação mecânica.

8. Um dia, para testar a acústica de um salão onde ele iria falar, ele falou em alta voz — "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo". Um trabalhador nas vigas ouviu e foi convertido.

9. A mulher de Spurgeon, Susannah, o chamava, "Sua Excelência".

10. Spurgeon falava tão fortemente contra a escravidão que os seus publicadores Americanos editavam os seus sermões.

11. Spurgeon recusou ser ordenado e recusou o título, "Reverendo". (Todavia, ele fundou um colégio de pastores).

12. Spurgeon entrevistou pessoalmente todos os membros candidatos na determinação de estar seguro da genuinidade da sua conversão.

13. Ele nunca disse à sua congregação em quem votar — mas ele denunciava os candidatos por nome desde o púlpito — e ele distribuía folhetos durante a semana para os oficiais que estavam querendo saber quem ele favorecia.

14. A cada Natal Spurgeon dava presentes individuais aos órfãos dos orfanatos que ele tinha fundado, mesmo quando o número aumentou para aproximadamente mil.

15. Spurgeon lia quase um livro por dia em média. Ele freqüentemente confessava estar ciente de oito grupos de pensamentos identificáveis em sua mente ao mesmo tempo.

16. Concernente aos orfanatos como obra social, Spurgeon declarou: "O socialismo é somente palavras e teoria. Nós cuidamos tanto dos corpos como das almas dos pobres e tentamos mostrar nosso amor à Verdade de Deus pelo amor verdadeiro".
17. O colégio de pregadores de Spurgeon fornecia educação geral assim como educação teológica. Não havia taxas fixas.

18. O diretor do colégio, George Rogers, era um pedobatista, mostrando a tolerância e magnanimidade de Spurgeon — mas todos na faculdade tinham que "ensinar as Doutrinas da Graça com dogmatismo, entusiasmo e clareza".

19. Spurgeon, pelas melhores estimativas disponíveis, foi o instrumento direto e pessoal de Deus de aproximadamente 12.000 conversões.

20. O Colégio de Pastores, diretamente através dos esforços de Spurgeon de propagação com base em sua estimativa de doações, enviou homens resultando na plantação de mais de 200 igrejas.

21. O primeiro livro publicado pela Moody Press foi o All Of Grace [Tudo pela Graça] de Spurgeon. Ele ainda é o bestseller número 1 deles.
22. Spurgeon certa vez pregou uma mensagem sonhando, a qual sua esposa, que estava acordada, registrou em papel. Ele a pregou na manhã seguinte.
23. Havia oração contínua para a obra do Tabernáculo Metropolitano no porão do mesmo.

24. Num culto em 1879, a congregação regular de 4.850 membros deixou o tabernáculo para permitir que novas pessoas, que estavam esperando do lado de fora, tivessem uma chance de vir e ouvir. O edifício imediatamente se encheu de novo,

25. Quando Moddy encontrou Spurgeon e descobriu que ele fumava charutos, ele ficou um tanto surpreendido e desconcertado. Spurgeon lhe assegurou que nunca tinha exagerado. Moody perguntou cortezmente, "E o que você consideraria um exagero?". Ao que Spurgeon respondeu, "Fumar dois ao mesmo tempo". É crido que Spurgeon parou de fumar charutos quando a loja de tabaco onde ele os comprova começou a se auto-anunciar como, "A Loja Onde Spurgeon Compra Seus Charutos".

O Papel da Lei na Evangelização

 
 
Por John Stott

Depois que Deus fez a promessa a Abraão, ele deu a Lei a Moisés. Por quê? Simplesmente porque ele tinha de fazer as coisas piorarem antes que pudesse melhorá-las. A Lei expôs o pecado, afrontou o pecado e o condenou.

O propósito da Lei era, por assim dizer, tirar a tampa da respeitabilidade do homem e expor o que ele realmente é abaixo da superfície — pecador, rebelde, culpado, sob o julgamento de Deus e sem esperança para salvar-se a si mesmo.

Hoje, deve-se permitir que a Lei faça a tarefa que Deus lhe confiou. Uma das grandes falhas da Igreja contemporânea é a tendência de abrandar o pecado e o julgamento.

De maneira semelhante aos falsos profetas, nós tratamos da ferida do povo de Deus "... como se não fosse grave" (Jr 6.14; 8.11). Veja como Dietrich Bonhoeffer expõe essa ideia: "É apenas quando alguém se submete à Lei que ele pode falar da graça... Não acho que seja cristão querer chegar ao NT de forma muito rápida e direta". Jamais devemos ignorar a Lei e ir direto ao evangelho. Fazer isso é contradizer o plano de Deus na história bíblica.

Essa não é a razão pela qual o evangelho não é apreciado hoje em dia? Alguns o ignoram, outros o ridicularizam. Então, em nosso evangelismo moderno, jogamos pérolas aos porcos (e a pérola mais cara é o evangelho). As pessoas não conseguem ver a beleza da pérola, porque não têm o conceito da imundícia do chiqueiro. Nenhum homem aceita o evangelho antes que a Lei, primeiro, revele a esse homem sua própria natureza e essência.

É apenas na escuridão profunda do céu noturno que as estrelas começam a aparecer, bem como também é apenas no pano de fundo escuro do pecado e do julgamento que o evangelho brilha.

Não admitimos nossa necessidade de abraçar o evangelho, para que este cure nossas feridas, antes de a Lei nos ter injuriado e derrotado. Jamais ansiaremos para que Cristo nos liberte antes de a Lei nos prender e aprisionar. Jamais buscaremos Cristo para ser justificados e viver, antes de a Lei nos condenar e matar. Jamais acreditaremos em Jesus, antes de a Lei nos levar ao desespero. Jamais nos voltaremos para o evangelho, para que este nos leve ao céu, antes de a Lei nos rebaixar até o inferno.

O Ensino de Calvino Sobre a Responsabilidade Social Da Igreja

 

 

Por AUGUSTUS NICODEMUS
Augustus Nicodemus.

Introdução
A Reforma Protestante ocorrida no século XVI não foi somente um movimento espiritual e eclesiástico. Teve também aspectos e dimensões políticas e sociais. Este último aspecto é o tema deste ensaio. Embora João Calvino, um dos maiores líderes da Reforma, ficou conhecido pelo seu vasto e eficaz ministério como teólogo, pregador e pastor, existe um outro aspecto do seu ministério, menos enfatizado entre as igrejas evangélicas no Brasil, que precisa ser resgatado em nossos dias, que é o aspecto social do seu ensino e prática pastoral.

Calvino, bem como os outros reformadores, deu atenção aos problemas sociais de sua época. Talvez pelo fato de ser da segunda geração de reformadores, Calvino podia ter uma visão mais ampla e amadurecida sobre o assunto. Ele esforçou-se para entender qual deveria ser o papel da Igreja cristã na reconstrução de uma sociedade justa que refletisse a vontade de Deus em termos de justiça social. Essa questão (que era essencialmente teológica) era extremamente aguda para os reformadores, particularmente pelo fato de viverem numa época e numa situação de grandes problemas sociais. Não é de se admirar que em suas Institutas da Religião Cristã, bem como em seus comentários (onde apropriado) Calvino freqüentemente trata de questões relacionadas com a responsabilidade social da Igreja e do Estado.

Meu propósito é procurar entender e expor de forma breve qual é a responsabilidade social da Igreja segundo João Calvino. Evidentemente, este ensaio não tem pretensões de originalidade. O assunto, por sua importância, já mereceu pesquisas bem extensas e cuidadosas, como a do francês André Biéler, publicada em português como O Pensamento Econômico e Social de Calvino (Casa Editora Presbiteriana, 1990). As informações históricas da pesquisa de Biéler servem de base para nossa reconstrução histórica no presente ensaio.

Devo começar com duas considerações importantes. Primeira, ao abordarmos o nosso assunto não devemos dissociar o pensamento social de Calvino da sua teologia. Calvino era acima de tudo um teólogo, um homem da Igreja. Ele não era um político, nem ativista social, mas essencialmente um pastor e um estudiosos das Escrituras. Seu pensamento social desenvolveu-se dentro da estrutura de seus pressupostos teológicos e bíblicos. Calvino construiu a sua teologia social a partir da sua convicção de que Cristo é Senhor de todos os aspectos da vida humana, e de que a Palavra de Deus deve regular todas as áreas da vida. Por esquecerem este ponto, alguns acabam representando erroneamente as idéias sociais de Calvino, bem como os motivos que levaram o Reformador a se envolver com atividade social na sua época.

A segunda consideração é que não devemos dissociar o pensamento social de Calvino da época em que ele viveu. Embora sua teologia social brotasse de princípios bíblicos válidos e atuais para todas as épocas, Calvino só poderia dar-lhes expressão dentro das circunstâncias históricas em que viveu e labutou. Naquela época, a Igreja Católica Romana era o grande poder econômico e político. Prevalecia naquela época o sistema econômico e social medieval e a monarquia como sistema de governo. Seria injusto requerer de Calvino uma abstração perfeita do seu contexto social, político e econômico, ao ponto de antecipar a democracia, a formação de sindicatos, ou soluções completas para questões como a escravidão (embora ele mesmo tenha se pronunciado contrário à escravidão, e ensinado que a legislação acerca da escravidão na Bíblia limita, não justifica, este flagelo). Mesmo assim, veremos que Calvino é extraordinariamente atual em quase tudo que formulou nesta área.

Genebra na Época de Calvino:
A cidade de Genebra foi o local onde Calvino passou a maior parte de sua vida, pregando, pastoreando e ensinando. Ali passou momentos de grande popularidade e também de rejeição. Foi ali que sua teologia social amadureceu, à medida em que enfrentava os males sociais que oprimiam Genebra bem como as demais cidades da Europa medieval.

O Governo de Genebra:
Genebra, antes da Reforma e da chegada de Calvino, era um bispado, uma importante cidade. Seu comando estava nas mãos de três autoridades: O bispo, que era não somente o chefe espiritual da Igreja, o "príncipe de Genebra", como teoricamente, era o soberano da cidade, com poderes para cunhar moedas, comandar a cidade em tempo de guerra, julgar apelações, e perdoar crimes. Depois vinha o magistrado, incumbido da defesa da cidade, da guarda, e da execução de prisioneiros. E por fim, o Conselho de Genebra, composto de Conselheiros de entre os moradores da cidade, que julgavam as questões criminais concernentes aos leigos (os pecados dos sacerdotes era competência do bispo), cuidavam do abastecimento da cidade, das finanças da cidade, e mantinham a boa ordem durante a noite através da polícia. Este era o sistema adotado pela maioria das cidades européias católicas.

Quando Genebra adotou oficialmente a Reforma (1536), o bispo foi despojado do seu poder, e os Conselheiros assumiram suas funções. Durante o período de bispado em Genebra, a Igreja Católica representada pelo bispo estivera acima do Estado. Com a expulsão do bispo, o Conselho assumiu suas funções, e agora o Estado estava acima da Igreja (agora Reformada). A IGREJA PERMANECIA LIGADA AO ESTADO, e estava debaixo do poder do Conselho de Genebra (cujos Conselheiros agora eram protestantes), que tinha em suas mãos o poder de disciplinar, designar os pastores, bem como a função de sustentá-los financeiramente.

A SITUAÇÃO SOCIAL DE GENEBRA:
Graves problemas sociais afligiam Genebra naquela época (bem como a Europa em geral). Havia pobreza extrema, agravada por impostos pesados. Os trabalhadores eram oprimidos por baixos salários e jornadas extensas de trabalho. Campeava o analfabetismo, e a ignorância; havia aguda falta de assistência social por parte do Estado; prevalecia a embriagues e a prostituição. Destacava-se o vício do jogo de cartas, que levava o pouco dinheiro do povo. As trevas espirituais características da Idade Média refletiam-se nas condições morais e sociais das massas. Essa era a situação que prevalecia em Genebra antes da chegada da Reforma espiritual, a qual deu lugar, em seguida, a reformas sociais, econômicas e políticas, mesmo antes de Calvino chegar à Genebra.

As Mudanças Introduzidas por Farel em Genebra:
Guilherme Farel foi o grande líder destas mudanças em Genebra. Sob sua influência, o Conselho da cidade cria o Hospital Geral no antigo Convento de Santa Clara, para dar atendimento médico aos pobres.
O Conselho também passou a regulamentar a vida dos seus cidadãos: proíbem-se as danças de ruas, a polícia é mobilizada para manter a ordem nas ruas, são promulgadas leis que regulamentam o uso dos bares, que proíbem jogo de cartas, blasfemar o nome de Deus, e servir bebidas durante o horário do sermão. Torna-se proibido vender pão e vinho a preços acima dos estipulados; são proibidos todos os dias santos, à exceção do domingo. Passa a ser obrigatório a todos os cidadãos de Genebra irem ouvir o sermão de domingo, sob pena de pesadas multas. E a instrução pública se torna obrigatória, pela primeira vez na Europa.

Evidentemente, nem todos em Genebra estavam satisfeitos com as pesadas proibições impostas pelos Conselheiros, que por sua vez, seguiam a Farel. Embora as intenções fossem as melhores possíveis, sabemos que leis por demais severas, que excedem os limites do razoável, provocam insatisfação, mesmo entre crentes verdadeiros. Isso sem mencionarmos que pessoas não regeneradas pelo Espírito Santo rejeitam e se revoltam contra leis que refletem o caráter santo de Deus. "A carne não está sujeita à lei de Deus, e na verdade, nem pode estar" (Romanos 8.7).

Foi a esta altura que Calvino chegou a Genebra. Ele estava apenas de passagem pela cidade. Seus planos eram de prosseguir em frente e achar um local tranqüilo onde pudesse estudar e escrever. Tinha na época 27 anos de idade, e havia acabado de publicar a primeira edição das Institutas. Quando Farel soube que Calvino estava na cidade foi visitá-lo, e instou com o jovem teólogo a que ficasse ali em Genebra, para ajudá-lo no trabalho de reforma. É conhecida a história de como Calvino, após ter apresentado toda sorte de desculpas, finalmente rendeu-se, aterrorizado pela maldição que o velho reformador invocou sobre ele, em caso de recusa. Assim, ele ficou, para ajudar Farel a solidificar as reformas eclesiásticas e sociais em Genebra. Em breve, Genebra iria tornar-se o centro espiritual e social da Reforma protestante na Europa.

Foi ali em Genebra, trabalhando como pregador, mestre e pastor na Igreja de Genebra, e lidando com as questões sociais mencionadas acima, que Calvino desenvolveu sua teologia social. No que se segue, procuraremos sintetizar seus pontos principais, concentrando-nos no que Calvino ensinou como sendo a responsabilidade social da Igreja de Cristo.

O ENSINO DE CALVINO:
A causa dos males sociais:
Fundamental para entendermos o pensamento de Calvino nesta área é termos em mente que para ele as causas da pobreza, miséria e a opressão, bem como da perversão e da corrupção da sociedade humana, estavam enraizadas na natureza decaída do homem, que por sua vez, remonta-se à Queda no Éden. Este princípio é crucial no entendimento de Calvino. Para ele, o pecado do homem havia trazido toda sorte de transtorno à ordem social: Pela queda do homem foi demolida toda ordem social, e em Adão tudo foi amaldiçoado por Deus, como está escrito em Romanos 8.20-23, onde Paulo afirma que a criação de Deus está em cativeiro imposto pelo pecado do homem.

A queda do homem introduziu perturbações profundas na sociedade humana, incluindo distúrbios na vida conjugal e familiar. Para Calvino, o caos econômico é causado pela ganância dos homens, e pela incredulidade de que Deus haverá de nos suprir as necessidades básicas, conforme Cristo nos promete em Mateus 6.
Calvino denuncia neste contexto pecados sociais como: estocagem de alimentos (trigo), monopólios, e a especulação financeira, como tendo origem no egoísmo e na avareza do homem. Ele denunciava aqueles que preferiam deixar deteriorar-se o trigo em seus celeiros, para que ali fosse devorado por bichos, e apodrecesse, ao invés de ser vendido, quando a necessidade do povo se fazia sentir. Por identificar biblicamente a raiz dos transtornos sociais, Calvino estava em posição de elaborar uma solução que atingisse o problema em seus fundamentos.

O Senhorio de Cristo:
Um segundo princípio que norteava a teologia social de Calvino era que o Cristo vivo e exaltado é Senhor de todo o universo. Os milagres que Ele exerceu sobre a ordem natural (acalmar a tempestade, por exemplo; ou tirar uma moeda da boca do peixe) demonstram esta realidade, diz Calvino.
Portanto, a obra de restauração realizada por Cristo não se limita apenas à nova vida dada ao indivíduo, mas abrange a restauração de todo o universo — o que inclui a ordem social e econômica. Desta forma, a atenção de Calvino como pastor e mestre, se estendeu para além das questões individuais e "espirituais". Se Cristo era o Senhor de toda a existência humana, era dever da Igreja dar atenção às questões sociais e políticas.

A Restauração da Sociedade:
Para Calvino, a restauração inaugurada por Cristo ocorre inicialmente no seio da Igreja. É na Igreja que a ordem primitiva da sociedade, tal qual Deus havia estabelecido, tende a ser restaurada. Na Igreja, as diferenças exacerbadas entre as classes sociais, econômicas e raciais, bem como os preconceitos delas procedentes, desaparecem, pois Cristo de todos faz um único povo (Gl 3.28; Ef 2.14). Não que Calvino cresse na total abolição destas classes. Ele concebia a coexistência harmônica entre a Igreja e instituições como o Estado, a sociedade e a família, com as suas respectivas estruturas e funcionamento. É na Igreja, porém, que as relações sociais de trabalho sofrem profundas alterações, ensina o reformador. Os patrões continuam patrões, mas aprendem a exercer sua autoridade sem opressão, ao passo que os empregados (que continuam empregados) aprendem a serem subordinados sem recriminação. Na Igreja, diz Calvino, Jesus Cristo estabelece entre os cristãos a justa redistribuição dos bens destinados a todos. Isto se dava através da atividade diaconal, trazendo alívio para as necessidades dos pobres e oprimidos, com recursos vindos dos ricos e abastados.

Devemos nos lembrar aqui que na época de Calvino todos os cidadãos de Genebra faziam parte da Igreja, e haviam, pelo menos teoricamente, abraçado o Evangelho. Evidentemente que Calvino fazia distinção entre os verdadeiros cristãos e os hipócritas. Mas em tese a Igreja em Genebra era tão extensa quanto os limites da cidade e o número de seus cidadãos. Quando Calvino falava em restauração social, ele tinha em mente uma sociedade civil governada por cristãos reformados, que aplicassem os princípios bíblicos às questões sociais, políticas e econômicas. Ou seja, um Estado que fosse orientado pela Igreja no exercício de suas funções.

É também importante notar que para Calvino a reforma da sociedade não é completa nem perfeita, visto que os efeitos do pecado não são de todo eliminados na presente época. É uma restauração parcial, portanto. Ela não consegue estabelecer plenamente a justiça no mundo presente. Ao mesmo tempo, ela não abole determinados aspectos da ordem social: permanece a hierarquia determinada por Deus entre o homem e a mulher, o patrão e o empregado, os pais e seus filhos.
A plena abolição dos distúrbios agora presentes da ordem social (as injustiças, a opressão, a corrupção, por exemplo) só se efetuará plenamente no Reino de Deus, no fim dos tempos, para o qual marcha toda a história dos homens e do universo. Sua vinda será precedida por convulsões cósmicas. Então, Jesus Cristo regressará em glória, e o príncipe deste mundo será aniquilado. Assim, será então estabelecido o novo céu e a nova terra, onde habitam plenamente a justiça (2 Pe 3.13; cf. Is 65.17; 66.22; Ap 21.1).
Dessa forma, para Calvino, a Igreja é uma antecipação do reino de justiça a ser introduzido por Cristo em sua vinda. Como tal, ela funciona no presente como uma sociedade provisória, governada pelas leis de Cristo. Embora já refletindo estes ideais, a Igreja ainda não o faz de forma perfeita, o que ocorrerá apenas no fim dos tempos.

A Responsabilidade Social da Igreja:
Quais as responsabilidades da Igreja nesta restauração provisória da sociedade? Podemos resumir o ensino de Calvino em três aspecto fundamentais. Segundo ele, a Igreja tinha um ministério didático, um político, e um social.

Ministério Didático:
Esse ministério da Igreja era para ser exercido através dos seus pastores e mestres. Consistia na instrução pública e particular, através de sermões e orientação individual, quanto ao ensino bíblico sobre a administração dos bens outorgados por Deus ao Estado e ao indivíduo. Em outras palavras, Mordomia Cristã.

Tomemos como exemplo a questão do trabalho e descanso. De acordo com Calvino, a Igreja deveria através do ministério regular de seus pastores instruir seus membros no ensino das Escrituras sobre o assunto. Em suas Institutas Calvino escreveu o que possivelmente foi o seu ensino em Genebra sobre o trabalho: só Deus alimenta o homem — dele vem as forças e as condições para que o homem trabalhe, e com seu suor, compre seu pão. O trabalho, portanto, é algo eminentemente digno pois é a realização da vontade de Deus para o homem. Assim, o homem não se realiza plenamente, senão no trabalho, pois foi para isto que foi criado e vocacionado, conforme está escrito em Gênesis 1 e 2. O pecado tirou a alegria e a graça que acompanhava o trabalho no início. A queda introduziu no mundo e na sociedade humana os distúrbios sociais relacionados com o trabalho (Gênesis 3). Mas, em Cristo o homem reencontra a alegria e o gosto do labor.

Quanto ao descanso, Calvino insistia que era necessário proporcionar aos trabalhadores um dia de descanso, o sábado cristão, que é o domingo, conforme sua interpretação do quarto mandamento (Êxodo 20.8-11). O descanso físico, porém, está intimamente ligado ao espiritual — sem Cristo, não há descanso verdadeiro no domingo. Assim, Calvino via a profanação do domingo como a origem da corrupção do trabalho. Segundo ele, é necessário cessarmos dos nossos labores, como Deus cessou dos dele (He 4.3). Assim, conforme Farel já havia orientado, o Conselho de Genebra, debaixo da influência de Calvino, aboliu todos os feriados católicos e determinou que no domingo cessasse todo labor em Genebra.
Através do púlpito, exercendo o seu ministério didático, a Igreja então levantava o ânimo moral do trabalhador assegurando-lhe que mesmo os trabalhos mais humildes são honrados por Deus, e que Deus assim determinou que pelo trabalho o homem encontrasse sua vocação na vida. E que em Cristo, o trabalhador encontraria a alegria e a satisfação que deveriam acompanhar o labor diário.

Havia um outro aspecto do ministério didático da Igreja que consistia em repreender, através das pregações, os membros que estivessem incorrendo em pecados sociais. Assim, os pastores de Genebra, orientados por Calvino, denunciavam do púlpito a prática da cobrança de juros excessivos por parte dos agiotas. Da mesma forma denunciavam a vadiagem. Vadiagem e parasitagem é pecado, ensinava Calvino. Para ele, quando Deus criou o homem e o ordenou cultivar a terra, condenou com este gesto a ociosidade e a indolência. Não há nada mais oposto à ordem da própria natureza do que consagrar a vida à beber, comer, e dormir, sem indagar sobre o que fazer (Sl 128.3; 2 Ts 3.10-12).

Calvino também falava contra o desemprego causado pela ganância dos ricos. Privar um homem do seu trabalho é pecado contra Deus — pois trabalho é dom de Deus, e o dever que ordenou ao homem, ensinava Calvino. É tirar-lhe a vida — pois os trabalhadores pobres dependem dia a dia do seu labor para o pão com se sustentam e às suas famílias — ao contrário dos ricos, que têm propriedades, reservas, etc. Assim, promover o desemprego , na opinião de Calvino, seria um atentado à vida do pobre, e portanto, um pecado contra o mandamento "Não matarás".

Esse era o primeiro aspecto da responsabilidade social da Igreja no pensamento de Calvino, ou seja, instruir seus membros, pela pregação da Palavra, acerca dos princípios bíblicos sobre o trabalho e o descanso.

Ministério Político:
Ao lado do Estado, a Igreja tinha um outro ministério, na teologia social do reformador, a saber, o ministério político. Para entendermos melhor o que Calvino tem a dizer sobre isto, vamos primeiro entender seu pensamento sobre a relação entre a Igreja e o Estado. Podemos resumi-lo no que Calvino tem a dizer sobre Romanos 13.1-7, uma passagem onde o apóstolo Paulo menciona as autoridades e nossos deveres para com elas. Para Calvino, a Igreja e o Estado são duas instituições procedentes de Deus (Rm 13.1-2); são instrumentos de Deus para a vinda do Seu Reino na terra. A Igreja é as primícias deste Reino vindouro, como já vimos; o Estado, por sua vez, deve manter a ordem provisória na sociedade humana. Portanto, existem entre as duas instituições laços duráveis e essenciais, e não simples relações ocasionais.

Qual a missão do Estado no pensamento de Calvino? Ainda com base em Romanos 13, Calvino sustenta que o Estado deveria manter a ordem na sociedade (conforme sua interpretação de 1 Tm 2.1-2), prover o sustento da Igreja, e promover os meios necessários para que haja a pregação fiel da Palavra de Deus entre os cidadãos. Ou seja, usando o poder civil dado por Deus, as autoridades deveriam envidar todos os esforços para que a religião verdadeira prevalecesse na terra. Porém, para Calvino isto não implica qualquer ingerência do Estado nos negócios da Igreja. O Estado faz estas coisas através de uma boa legislação que garanta a livre pregação da Palavra de Deus. A edificação da Igreja se faz apenas pela pregação da Palavra no poder do Espírito, e não pela interferência do poder do Estado. E aqui Calvino critica os demais reformadores que desejavam uma união entre Igreja e Estado, e que o Estado tomasse conta dos negócios da Igreja (como ocorreu parcialmente na Alemanha).

Se esta era a missão do Estado, qual seria a missão política da Igreja? Para Calvino, em primeiro lugar, orar pelas autoridades constituídas (1 Tm 3.1-2). E isto, em qualquer país em que os cristãos se encontrassem, independente da forma de governo daquele pais, por mais hostis que as autoridades fossem, para que se convertam e venham ao bom senso, assim como Jeremias exortou os cativos a que orassem pela Babilônia (Jr 29.7).
Em segundo lugar, a Igreja deveria, quando necessário, advertir as autoridades, quando estas esquecessem o senso divino do seu ofício, quando abusassem do poder, quando cometessem injustiça, quando tolerassem injustiças contra os pobres, os fracos e os oprimidos. Se a Igreja cessar de vigiar o Estado, diz Calvino, ela se torna cúmplice da injustiça social, cessando de cumprir sua missão política.

Em terceiro lugar, a Igreja também deveria, como parte de sua tarefa, tomar a defesa dos pobres e fracos contra os ricos e poderosos. Ela deveria consistentemente alertar o Estado a que proteja os fracos, os oprimidos e explorados pelos ricos, os que não possuem poder político ou econômico, e não têm proteção social. Neste sentido, a Igreja deve sempre denunciar ao Estado, os ricos que exploram a miséria alheia em tempo de calamidade, os que tiram partido da sua situação social ou oficial para se enriquecerem e se porem a coberto. Calvino entendia que estas atitudes eram apropriadas para a Igreja pois refletiam o ensino da lei de Moisés e do ministério dos profetas, ao denunciarem a opressão social em Israel.

Por fim, a Igreja deveria recorrer à autoridade do Estado na aplicação de sanções disciplinares, e solicitar do Estado as medidas necessárias para a manutenção da ordem e da justiça social. Em resumo, o ideal reformado era este: uma Igreja politicamente livre, inteiramente dependente da Palavra de Deus, em um Estado que lhe respeite e lhe favoreça o ministério.

Ministério Social:
O outro aspecto da responsabilidade social da Igreja era a assistência social. A Igreja, segundo a teologia social de Calvino, deveria envolver-se ela mesma no cuidado dos pobres, dos órfãos e das viúvas — enfim, dos necessitados. E isto sem fazer distinção entre os da igreja e os de fora. Ou seja, a assistência social da Igreja deveria contemplar inclusive os estrangeiros e refugiados que chegavam a Genebra.

O ensino de Calvino sobre este ponto é vasto. Ele trata do uso e desfruto dos bens materiais, e se dedica especialmente a expor o ensino bíblico sobre o pobre e o rico, e sobre a prática das esmolas. O órgão encarregado do ministério social da Igreja, diz Calvino, é o diaconato. Foi Calvino quem primeiro resgatou esta função bíblica do ofício diaconal. Ele ensinou que os diáconos eram ministros eclesiásticos, encarregados de toda a assistência social da Igreja (Atos 6.1-7), e como tal, deveriam ser eleitos conforme as regras estabelecidas por Paulo em 1 Timóteo 3.8-13. Até hoje em algumas igrejas Reformadas a administração financeira da Igreja e o uso dos recursos para a assistência aos pobres e necessitados é atribuição da junta diaconal.

O diaconato, como braço do ministério social da Igreja, se desenvolve em três ações básicas, segundo Calvino:
1) Administração dos bens destinados à comunidade. A igreja recebia recursos para a assistência social de duas fontes: a generosidade dos fiéis nas coletas levantadas para este fim aos domingos, e o tesouro do Estado, através do Conselho de Genebra, que votava verbas para este fim. Estes recursos eram recebidos e administrados pelos diáconos.
2) Distribuição de forma justa e igual entre os necessitados. Os diáconos cuidavam que todos os genuinamente carentes tivessem participação igual nos bens destinados aos pobres. Num ambiente marcado pela opressão social e pelas desigualdades, os diáconos certamente tinham muito trabalho a ser feito, e necessitavam de muita sabedoria para faze-lo.
3) Visitação e cuidado dos doentes. As guerras, a falta de saneamento público, as epidemias, a falta de assistência médica do Estado, e a pobreza, deixavam um saldo enorme de pessoas doentes. O ministério dos diáconos incluía o cuidado para com estas pessoas, utilizando-se quando necessário dos recursos da Igreja.

É necessário observar que no pensamento de Calvino o ministério social da Igreja era de apoio ao Estado. Cabia ao governo civil cuidar dos pobres, doentes e necessitados. Mas, como se tratava de uma tarefa de enormes proporções, a Igreja vinha como apoio e auxílio, dando ela mesma assistência social onde necessário.

A Prática Social de Calvino em Genebra:
Persuadido por Farel, Calvino se deixa ficar em Genebra para auxiliar nas reformas necessárias. Logo ficou claro que, para ele, isto incluía ir além das reformas eclesiásticas. Debaixo de sua influência, a Igreja passa a agir de forma marcante na vida social e política da cidade. Aquilo que ele expõe em suas Institutas procurou aplicar de forma prática às necessidades de Genebra.

O diaconato é organizado e entra imediatamente em ação. O Hospital Geral, fundado por Farel, dá assistência médica gratuita aos pobres, órfãos e viúvas, com médicos de plantão pagos pelo Estado. É criada a primeira escola primária obrigatória da Europa.
Os refugiados chegados a Genebra recebem treinamento profissional e assistência médica e alimentar, enquanto se preparam para exercer uma profissão.

Os pastores intercedem continuamente diante do Conselho de Genebra em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de salários para os trabalhadores. Os pastores pregavam contra a especulação financeira, e fiscalizavam parcialmente os preços contra a alta provocada pelos monopólios. Debaixo da influência dos pastores, o Conselho limita a jornada de trabalho dos operários. A vadiagem é proibida por leis: vagabundos estrangeiros que não tem meios de trabalhar, devem deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os vagabundos da cidade devem aprender um ofício e trabalhar, sob pena de prisão. O Conselho institui cursos profissionalizantes para os vadios e os jovens, para que ele possam entrar no mercado de trabalho.

E finalmente é digno de nota que havia uma vigilância da parte de Calvino e demais pastores de Genebra contra a má administração pública. Houve inclusive o caso de um funcionário corrupto que foi despedido por influência de Calvino.
O próprio Calvino levava uma vida modesta, apesar de todo o seu prestígio e influência. Na prática, procurou viver intensamente os princípios que defendera em sua teologia social. A sua influência estendeu-se além do seu tempo.

Os Puritanos, autores da Confissão de Fé de Westminster e dos dois Catecismos, foram profundamente influenciados pelo ensino de Calvino, e sua teologia social não foi exceção. No capítulo sobre o Magistrado Civil (Cap. XXIII) a Confissão de Fé reflete o ensino de Calvino sobre a vocação social e política dos cristãos (par. 2), a independência da Igreja do Estado, para gerir seus próprios interesses, e o dever do Estado de proteger a Igreja cristã (par. 3), o dever do Estado de assistir e proteger os necessitados independentemente das convicções religiosas dos mesmos (par. 3), bem como o dever dos cristãos de honrar e de submeterem-se ao Estado (par. 4).

Um outro exemplo são as contínuas referências à questões sociais e econômicas nestes símbolos da fé reformada. A exposição no Catecismo Maior do sexto mandamento, "Não matarás", inclui como deveres exigidos "... a justa defesa da vida contra a violência... o uso sóbrio do trabalho e recreios ... confortando e socorrendo os aflitos, e protegendo e defendendo o inocente". Como pecado, são incluídos "... a negligência ou retirada dos meios lícitos ou necessários para a preservação da vida ... o uso imoderado do trabalho .... a opressão .... e tudo que tende à destruição da vida de alguém".

Conclusões:
Quero concluir este ensaio com duas observações sobre o ensino social de Calvino. Primeiro, que ele estava profundamente enraizado em sua teologia e em sua interpretação das Escrituras. Era fruto de suas convicções teológicas. Portanto, é impossível entender as reformas sociais que empreendeu em Genebra sem os pressupostos da sua teologia.
Segundo, o pensamento social de Calvino tem produzido abundante fruto na história da humanidade, após a Reforma. Muitas das universidades, escolas, e asilos de que temos notícia foram fundados por calvinistas. Boa parte das críticas feitas contra os calvinistas, de que são levados à inércia e paralisia social por causa de sua ênfase na soberania de Deus em detrimento da responsabilidade humana, simplesmente revela um desconhecimento (proposital?) dos fatos e uma ignorância do que seja o Calvinismo.

E finalmente, cabe-nos perguntar em que sentido uma teologia social calvinista poderia nos ajudar hoje, aqui e agora, no Brasil. Evidentemente existem profundas diferenças culturais, políticas e religiosas entre a Suíça do século XVI e o Brasil do século XXI. Mas existem muitas semelhanças também, particularmente no que se refere aos problemas sociais. Além do mais, os princípios elaborados por Calvino para atender às questões sociais e econômicas são válidos para nós hoje, pois são bíblicos. Quer na Suíça medieval, quer no Brasil moderno, permanece como verdade imutável o fato de que a raiz da opressão social é espiritual e moral, como Calvino apregoou. Bem como o fato de que Jesus Cristo é o Senhor de todas as coisas, em todos os lugares, e em todas as épocas, e que seu reino se estende à política, à sociedade e à economia tanto de genebrinos quanto de brasileiros.

Assim, creio que a Igreja evangélica brasileira (especialmente os reformados) deveria envolver-se em todos estes aspectos, usando os meios apropriados, lícitos e legais para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos opressores e os pobres preguiçosos, e exercitando obras de misericórdia e assistência social através de uma diaconia treinada e motivada.
Todo este envolvimento social deve acontecer sem perder de vista que a missão primordial da Igreja é promover a reforma (parcial e provisória) da sociedade através da proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita a plena justiça de Deus.

As 95 Teses de Lutero

 

 

 

Por Martinho Lutero
Debate para o esclarecimento do valor das indulgências 1517


Por amor à verdade e no empenho em elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do R. P. Martinho Lutero,

Mestre de Artes e de Santa Teologia e Professor Catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão ele solicita que os que não possam estar presentes e debater com ele oralmente, o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

1. Ao dizer "Fazei penitência" [o original apresenta "penitentiam agite", que é citação da Vulgata. O texto grego usa "metanoeite", que Almeida RA reproduz mais adequadamente por "arrependei-vos" (Mt 4.17).] etc., nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.

2. Esta expressão não pode ser entendida no sentido do sacramento da penitência (isto é, da confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).

3. Ela também não se refere apenas a uma penitência interior; sim, ela não seria penitência se externamente não produzisse toda sorte de mortificações da carne.

4. Por isto a pena também perdura enquanto houver o ódio da pessoa contra si mesma (isto é, a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada para o reino dos céus.

5. 0 papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que ele impôs por decisão própria ou dos cânones.

6. 0 papa não pode fazer cessar culpa alguma, senão declarar e confirmar que ela foi perdoada por Deus. Além disso ele pode sem dúvida remiti-la nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.

7. Deus não perdoa a culpa de quem quer que seja, sem que se sujeite em completa humildade ao sacerdote como a seu substituto.

8. Os cânones penitenciais (que são a prescrição do modo de confessar e expiar) são apenas impostos aos vivos; nada se deve impor aos moribundos com base nos mesmos.

9. Por isso o Espírito Santo nos beneficia através do papa, quando este, em seus decretos, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade extrema.

10. Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que ainda reservam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório.

11. Essa erva daninha, de se poder transformar a pena canônica em pena do purgatório foi semeada enquanto os bispos estavam obviamente dormindo.

12. Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da verdadeira contrição.

13. Através da morte os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.

14. Piedade ou amor imperfeitos no moribundo necessariamente trazem consigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.

15. Este temor e horror por si só já basta (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão muito próximos da angústia do desespero.

16. Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semi-desespero e a segurança.

17. Tudo indica que é necessário diminuir o horror das almas no purgatório, bem como promover o amor.

18. Parece não ter sido provado, nem à base da razão e nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou da possibilidade de crescimento no amor.

19. Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas e seguras de sua felicidade, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.

20. Portanto, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende simplesmente de todas, mas somente daquelas que ele mesmo impôs.

21. Erram, portanto, aqueles apregoadores de indulgências que afirmam que a pessoa é libertada e salva de toda pena pelas indulgências do papa.

22. Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de um único castigo que elas, segundo os cânones (da igreja), deviam ter saldado nesta vida.

23. Se é que se pode dar algum perdão de todos os castigos a alguém, este se dará somente aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.

24. Por isso a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada com essa magnífica e indistinta promessa de absolvição do castigo.

25. 0 mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, todo bispo e cura d’almas também o têm em sua diocese e paróquia em particular.

26. 0 papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de intercessão.

27. Pregam doutrina humana aqueles que dizem, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando (do purgatório).

28. Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, pode aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.

29. E quem é que sabe se realmente todas as almas no purgatório querem ser resgatadas? Diz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal.

30. Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.

31. Tão raro como o que é penitente de verdade é o que recebe autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.

32. Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência.

33. Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de Deus, através da qual a pessoa se reconcilia com Deus.

34. Isso porque aqueles favores das indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental, determinadas por homens.

35. Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgatar as almas ou adquirir privilégios confessionais.

36. Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão plena de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.

37. Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo e da igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.

38. Mesmo assim a remissão e a participação da mesma pelo papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse) constituem declaração do perdão divino.

39. Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar, perante o povo, ao mesmo tempo a liberalidade das indulgências e a verdadeira contrição.

40. A verdadeira contrição procura e ama os castigos, ao passo que a abundância das indulgências os afrouxa e faz odiá-los, havendo ocasião para tanto.

41. Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras de caridade.

42. Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa de alguma forma ser comparada com as obras de misericórdia.

43. Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.

44. Ocorre que através da obra de caridade cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre de castigo.

45. Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências, obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.

46. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa, e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgências.

47. Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre, e não constitui obrigação.

48. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa necessita mais de orações devotas a seu favor e portanto as deseja mais, ao distribuir indulgências, do que o dinheiro que se está pronto a pagar.

49. Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis, enquanto não depositam nelas a sua confiança, porém muito prejudiciais quando, de posse delas, perdem o temor de Deus.

50. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das extorsões feitas pelos apregoadores de indulgências, ele preferiria reduzir a cinzas a basílica de S. Pedro do que edificá-la com a pele, carne e ossos de suas ovelhas.

51. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns apregoadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo se para isto fosse necessário vender a basílica de S. Pedro.

52. Vã é a confiança de salvação conferida pelas cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o próprio papa dessem sua alma como garantia pelas mesmas.

53. São inimigos de Cristo e do papa aqueles que por causa da pregação de indulgências fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.

54. Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências que àquela palavra.

55. A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são menos importantes) são celebradas com um toque de sino, uma pompa e cerimônia, o evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos, pompas e cerimônias.

56. Os tesouros da igreja, dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem conhecidos junto ao povo de Cristo.

57. Eles, com certeza, não devem ser de natureza temporal, senão muitos dos pregadores de indulgências não os distribuiriam com tanta facilidade, antes apenas ficariam a ajuntá-los.

58. Tampouco consistem eles dos méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do homem interior e ao mesmo tempo a cruz, a morte e o inferno do homem exterior.

59. S. Lourenço disse que os pobres da igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.

60. Não exageramos ao dizer que as chaves da igreja, que lhe foram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.

61. Pois está claro que, para a remissão dos castigos e para a absolvição em determinados casos, o poder do papa por si só é suficiente.

62. 0 verdadeiro tesouro da igreja é o santíssimo evangelho da glória e da graça de Deus.

63. Este tesouro, entretanto, é muito odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam Os últimos.

64. Em contrapartida, o tesouro das indulgências é com razão o mais benquisto, pois faz dos últimos os primeiros.

65. Por esta razão os tesouros do evangelho foram as redes com que outrora se pescavam os homens de grandes riquezas.

66. Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.

67. As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como sendo a mais sublime graça, realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.

68. Estas são, entretanto as graças mais ínfimas, se comparadas com a graça de Deus e a devoção à cruz.

69. Os bispos e curas d’almas têm a obrigação de admitir com toda reverência os comissários de indulgências apostólicas.

70. Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos, em lugar do que lhes foi incumbido pelo papa.

71. Quem fala contra a verdade das indulgências apostólicas, seja excomungado e maldito.

72. Aquele, porém, que se empenhar zelosamente contra a devassidão e licenciosidade de palavras do pregador de indulgências, seja bendito.

73. Assim como o papa com razão fulmina 0 aqueles que de alguma forma procuram defraudar o comércio de indulgências.

74. muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, defraudam a santa caridade e verdade.

75. A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes a ponto de absolver um homem que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.

76. Em contrapartida, afirmamos que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais no que se refere à sua culpa.

77. A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças, é blasfêmia contra São Pedro e o papa.

78. Afirmamos, ao contrário, que também este ou qualquer outro papa tem graças maiores a dar, quais sejam o evangelho, as virtudes espirituais, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Coríntios 12.

79. Dizer que a cruz com as armas do papa, altivamente erguida, se equipara à cruz de Cristo, é blasfêmia.

80. Terão que prestar contas de sua atitude os bispos, curas d’almas, e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo.

81. Esta licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.

82. Por exemplo: Por que o papa não evacua o purgatório, por santíssimo amor às almas e pela suprema necessidade das mesmas, sendo esta de todas as causas a mais justa, já que ele redime inúmeras almas por meio do tão miserável dinheiro para a construção da basílica, que constitui uma causa tão insignificante?

83. Ou: Por que se mantêm as missas em prol dos defuntos e a memória dos aniversários de falecimento e não se restitui ou se permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, quando já não é justo orar pelos redimidos?

84. Ou: Que nova piedade, de Deus e do papa, é esta, que se permita ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus mediante dinheiro mas mesmo assim não redime esta mesma alma piedosa e dileta gratuitamente?

85. Ou: Estando os preceitos penitenciais em si já de há muito revogados e mortos de fato por desuso, por que razão são eles assim mesmo pagos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?

86. Ou: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro, ao invés do de seus pobres fiéis, ao menos esta uma basílica de São Pedro?

87. Ou: 0 que é que o papa perdoa e concede àqueles que pelo arrependimento completo têm direito ao perdão e à participação plenários?

88. Ou: Que benefício maior se poderia proporcionar à igreja, se o papa, como agora o faz uma vez, concedesse estas remissões e participações cem vezes ao dia a qualquer dos fiéis?

89. Já que com as indulgências ele procura mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que suspende ele as cartas de indulgencia outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?

90. Rebater estes argumentos muito perspicazes dos leigos, somente pela força e sem motivos razoáveis, significa expor a igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.

91. Se, portanto, as indulgências fossem apregoadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, estas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.

92. Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo "Paz,paz!" sem que haja paz!

93. Abençoados, porém, sejam todos os profetas que dizem ao povo de Cristo "Cruz! cruz!", sem que haja cruz!

94. Admoestem-se os cristãos que procuram seguir seu cabeça, Cristo, através de penas, da morte e do inferno.

95. E assim confiem entrar no céu passando antes por muitas tribulações do que pela segurança da paz infundada.