quarta-feira, 20 de janeiro de 2016




A REFORMA CALVINISTA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS PARA A PREGAÇÃO E A LITURGIA


I. DEFINIÇÃO DE TERMOS
Inicialmente, é importante considerar as três designações que têm sido aplicadas aos herdeiros da Reforma Suíça: “reformados”, “calvinistas” e “presbiterianos”. Esses conceitos são semelhantes em alguns aspectos e diferentes em outros.

1. Reformados
A Reforma Protestante começou na Alemanha, em 1517, com o monge Martinho Lutero (1483-1546). Os seus seguidores logo passaram a ser conhecidos como “luteranos”. Poucos anos depois, surgiu em um país vizinho, a Confederação Suíça, um novo movimento protestante, independente do movimento de Lutero, que, para distinguir-se deste, passou a ser denominado como “reformado”. Essa designação resultou do entendimento de que a “Segunda Reforma” ou “Reforma Suíça” estava realizando uma obra de renovação da igreja mais profunda e radical do que aquela proposta por Lutero. Inicialmente, o movimento reformado esteve mais ligado à pessoa de Ulrico Zuínglio (1484-1531). Porém, com a morte prematura deste, o movimento veio a associar-se com o seu maior teólogo e articulador, o francês João Calvino (1509-1564).

Portanto, o movimento reformado é o ramo do protestantismo que surgiu na Suíça do século 16, tendo como líderes originais Ulrico Zuínglio, em Zurique, e especialmente João Calvino, em Genebra. Esse movimento veio a caracterizar-se por certas concepções teológicas e formas de organização eclesiástica que o distinguiram de todos os demais grupos protestantes da época (luteranos, anabatistas e anglicanos). A tradição reformada foi preservada e desenvolvida pelos sucessores imediatos ou mais remotos dos líderes iniciais, tais como João Henrique Bullinger (1504-1575), Teodoro Beza (1519-1605), os puritanos ingleses e outros.

Até hoje, as igrejas ligadas a essa tradição no continente europeu são conhecidas como Igrejas Reformadas (da Suíça, França, Holanda, Hungria, Romênia e outros países). Porém, o termo “reformado” é mais que a designação de uma tradição teológica ou eclesiástica. É um conceito abrangente que inclui todo um modo de encarar a vida e o mundo a partir de uma série de pressupostos, dentre os quais se destaca a soberania de Deus. Daí falar-se também em “fé reformada”, “cosmovisão reformada”, etc.

2. Calvinistas

O calvinismo, como o nome indica, é o sistema de teologia elaborado pelo mais brilhante e profundo dentre os reformadores, João Calvino. Esse sistema, contido especialmente na principal obra de Calvino, a Instituição da Religião Cristã ou Institutas, resulta de uma interpretação cuidadosa e sistemática das Escrituras, e tem como um de seus principais fundamentos a noção da absoluta soberania de Deus como criador, preservador e redentor. O calvinismo não é somente um conjunto de doutrinas, mas inclui concepções específicas a respeito do culto, do governo eclesiástico e da missão da igreja.

Normalmente, todos os reformados deveriam ser calvinistas, mas isso nem sempre ocorre na prática. Muitos herdeiros de Calvino, embora se considerem reformados, não mais se designam ou podem ser designados como calvinistas, por terem abandonado certas convicções e princípios básicos defendidos pelo reformador. Portanto, todo calvinista é reformado, mas nem sempre a recíproca é verdadeira.

3. Presbiterianos

O termo presbiteriano foi adotado pelos reformados nas Ilhas Britânicas (Escócia, Inglaterra e Irlanda). Isso se deve ao contexto político-religioso em que o protestantismo foi introduzido naquela região, no qual a forma de governo da igreja teve uma importância preponderante. Os reis ingleses e escoceses preferiam o sistema episcopal, ou seja, uma igreja governada por bispos e arcebispos, o que permitia um maior controle da igreja pelo Estado. Já o sistema presbiteriano, isto é, o governo da igreja por presbíteros eleitos pela comunidade e reunidos em concílios, significava um governo mais democrático e autônomo em relação aos governantes civis. Das Ilhas Britânicas, o presbiterianismo foi para os Estados Unidos e dali para muitas partes do mundo, inclusive o Brasil.

Daí resulta outra distinção importante. Todo presbiteriano é, por definição, reformado e, em teoria, calvinista. Porém, nem todos os calvinistas são presbiterianos. Um bom exemplo é a Inglaterra dos séculos 16 e 17. Um grande número de protestantes ingleses daquela época eram calvinistas, mas muitos deles não aceitavam o sistema de governo presbiteriano. Entre eles estavam os congregacionais, os batistas e muitos anglicanos.

II. ORGANIZADORES INICIAIS

1. O fundador da tradição reformada: Ulrico Zuínglio (1484-1531)

· 1484: Zuínglio nasceu no dia 1° de janeiro, poucos meses após o nascimento de Martinho Lutero. Tornou-se sacerdote católico e foi influenciado pelo humanismo renascentista.

· 1515-1517: conheceu Erasmo de Roterdã e leu a sua edição do Novo Testamento grego acompanhado de uma tradução latina.

· 1518-1519: após trabalhar em Glarus, foi nomeado “sacerdote do povo” na principal igreja de Zurique e começou a pregar uma série de sermões sobre o Novo Testamento, iniciando no Evangelho de Mateus.

· 1522-1523: manteve as primeiras controvérsias teológicas: sobre o jejum da quaresma e o celibato clerical. Apresentou os Sessenta e Sete Artigos em um debate público promovido pelas autoridades civis.

· 1525: publicou o Comentário sobre a Verdadeira e a Falsa Religião, insistindo na abolição da missa; foi instituído em seu lugar o culto evangélico. Zuínglio rompeu com os anabatistas.

· 1529: participou do Colóquio de Marburg, na Alemanha, ao lado de Lutero e outros reformadores.

· 1531: morreu aos 47 anos na segunda batalha de Kappel, contra os cantões católicos.

(a) Ênfases teológicas de Zuínglio

· A centralidade das Escrituras: a Reforma de Zurique começou com um retorno às fontes da fé cristã na Bíblia. Zuínglio afirmou: “Eventualmente cheguei ao ponto em que, dirigido pela Palavra e pelo Espírito de Deus, vi a necessidade... de aprender a doutrina de Deus diretamente da sua Palavra”. A igreja seria purificada e reformada através do estudo e da pregação das Escrituras. Essa ênfase da Reforma Suíça numa reforma segundo a Palavra de Deus é a fonte do termo “reformado”.

· O princípio regulador: na aplicação das Escrituras à vida da igreja, os reformadores suíços foram mais radicais do que Lutero. Este queria eliminar da vida da igreja tudo o que fosse condenado pelas Escrituras; Zuínglio e seus colegas insistiram que toda crença e prática cristã devia ter justificativa expressa na Palavra de Deus.

· A Ceia do Senhor: para Zuínglio, a Ceia não era um sacrifício, mas a recordação de um sacrifício, isto é, um memorial do que Jesus Cristo havia feito na cruz e uma oportunidade para os crentes reafirmarem a sua fé. Os elementos da Ceia eram apenas símbolos do corpo e do sangue de Cristo. Esse foi o ponto de maior divergência entre Zuínglio e Lutero no Colóquio de Marburg, em 1529.

· A justificação pela fé: Zuínglio concordava com Lutero que a justiça de Cristo é imputada ou atribuída ao crente; mas esse entendimento forense não era suficiente: a justiça de Cristo também devia ser infundida no cristão. Em outras palavras, o crente não apenas é declarado justo, mas precisa tornar-se moralmente justo.

· A lei de Deus: Zuínglio também discordou de Lutero quanto à função da lei, porque para ele a lei tinha um papel permanente na vida do cristão. Ele não fez oposição entre lei e evangelho, mas incluiu a lei dentro do evangelho, como um instrumento de santificação.

(b) Sucessores
· Zuínglio foi sucedido por João Henrique Bullinger (1504-1575), um pastor e teólogo hábil e criativo. Ele subscreveu com Calvino o Consenso Tigurino (1549), um acordo sobre a Ceia do Senhor. Escreveu muitas obras, sendo mais conhecido como o autor da Segunda Confissão Helvética (1566), um documento moderado que foi aceito por muitas igrejas reformadas da Europa. Alguns tópicos importantes do seu pensamento são: o pacto, a comunidade cristã, as funções do magistrado e do ministro, a Santa Ceia. Outro teólogo importante da tradição zuingliana foi João Ecolampádio (1482-1531), o reformador de Basiléia.

2. O consolidador da tradição reformada: João Calvino (1509-1564)
· 1509 – Calvino nasceu no dia 10 de julho em Noyon, uma pequena cidade no nordeste da França. Seu pai, Gérard Cauvin, era advogado dos sacerdotes e secretário do bispo local. Aos 12 anos, o menino recebeu um cargo eclesiástico.

· 1523-1528: quando ainda adolescente, estudou humanidades e teologia na Universidade de Paris.

· 1528-1532: estudou direito em Orléans e Bourges; teve aulas de grego com o luterano Melchior Wolmar.

· 1532-1534: retornou a Paris e retomou os seus estudos humanísticos; publicou a sua primeira obra (comentário do tratado De Clementia, de Sêneca). Experimentou uma “conversão repentina” e fugiu da cidade (01-11-1533); visitou o humanista Jacques Lefèvre D’Étaples.

· 1536-1538: publicou a primeira edição da Instituição da Religião Cristã (Institutas) e teve a primeira estada em Genebra.

· 1538-1541: expulso de Genebra, passou três anos produtivos em Estrasburgo, onde atuava o reformador Martin Bucer. Pastoreou uma igreja de refugiados, lecionou em uma academia e escreveu novas obras (2ª edição das Institutas, primeiro comentário bíblico – Epístola aos Romanos, tratado sobre a Ceia do Senhor).

· 1541-1555: escreveu a Resposta a Sadoleto e foi convidado para voltar a Genebra. Organizou a igreja reformada (Ordenanças Eclesiásticas); por muitos anos, teve um relacionamento tenso com as autoridades civis.

· 1555-1564: período mais harmonioso, no qual desenvolveu sua grande obra em prol da Reforma. Em 1559, publicou a última edição das Institutas e criou a Academia de Genebra.

(a) Contribuições
· Teólogo e escritor profundo e criativo: sua vasta obra aborda todas as áreas da teologia e da sociedade.

· Pastor e estruturador da igreja reformada: deu forma à teologia reformada e ao sistema presbiteriano de governo eclesiástico.

· Articulador do movimento reformado: seus contatos e correspondência contribuíram para a difusão do movimento por toda a Europa.

· Outros teólogos reformados influentes foram: Martin Bucer (†1551), Jan Laski (†1560), Pedro Mártir Vermigli (†1562), João Knox (†1572), Girolamo Zanchi (†1590) e Teodoro Beza (†1605), entre outros.

(b) Escritos

· A enorme produção literária de Calvino ocupa 59 volumes da coleção intitulada Corpus Reformatorum. As concepções teológicas do reformador se encontram em seis categorias de escritos:

1. As Institutas: a mais influente exposição da teologia protestante e reformada. Calvino produziu ao todo oito edições do texto latino (1536-1559) e cinco traduções para o francês. A primeira edição tinha apenas seis capítulos; a última totalizou oitenta. Tem quatro partes, que seguem a estrutura do Credo dos Apóstolos:

§ Livro I – O Conhecimento de Deus, o Criador: o duplo conhecimento de Deus, as Escrituras, a Trindade, a criação e a providência.
§ Livro II – O Conhecimento de Deus, o Redentor: a queda e a corrupção humana, a Lei, o Antigo e o Novo Testamento, Cristo o Mediador – sua pessoa (profeta, sacerdote, rei) e sua obra (expiação).
§ Livro III – A Maneira como Recebemos a Graça de Cristo, seus Benefícios e Efeitos: fé e regeneração, arrependimento, vida cristã, justificação, predestinação, ressurreição final.
§ Livro IV – Os Meios Externos pelos quais Deus nos Convida para a Sociedade de Cristo: a igreja, os sacramentos, o governo civil.

2. Comentários: são um complemento das Institutas. Calvino escreveu comentários de todos os livros do Novo Testamento, exceto II e III João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías. Deixou preleções sobre muitos livros da Bíblia.

3. Sermões: Calvino expunha sistematicamente os livros da Bíblia. Costumava pregar sobre o Novo Testamento aos domingos e sobre o Antigo Testamento durante a semana. Seus sermões eram anotados taquigraficamente por um grupo de refugiados franceses. A série Corpus Reformatorum contem 872 sermões do reformador.

4. Folhetos e tratados: temas apologéticos (contra católicos e anabatistas) e gerais.

5. Cartas: escritas a outros reformadores, soberanos, igrejas perseguidas, protestantes encarcerados, pastores, colportores.

6. Escritos litúrgicos e catequéticos: confissão de fé, catecismo, saltério.

(c) O pensamento teológico de Calvino
· Conteúdo bíblico: a reflexão teológica de Calvino está firmemente ancorada nas Escrituras. Ela é fruto do seu estudo cuidadoso e sistemático das Escrituras. Antes de ser sistemática ou especulativa, a sua teologia é bíblica, revelando o seu impressionante conhecimento das Escrituras.

· Abrangência: em sua reflexão teológica, Calvino procurou abordar todos os temas presentes nas Escrituras. O seu pensamento não só cobre todas as áreas da teologia, mas vai além da mesma, para abordar questões éticas, políticas, sociais e econômicas. Isso é típico da cosmovisão reformada: a preocupação em relacionar a fé bíblica com todas as áreas da vida.

· Respeito pela herança cristã: Calvino sabia que a teologia cristã não havia começado com ele e por isso estava pronto a aceitar tudo aquilo de bom e proveitoso que foi produzido antes do seu tempo. Ele valorizou e utilizou a tradição dogmática e exegética da igreja antiga, expressa nos grandes credos cristãos dos séculos 4° e 5° e no pensamento de escritores como Ambrósio, Agostinho, João Crisóstomo, Bernardo de Claraval e outros.

· Teocentricidade: a teologia de Calvino gira em torno do Deus trino em sua soberania, graça e glória. Para uma excelente síntese dessa teologia, ver o livro Teologia dos Reformadores, de Timothy George (Edições Vida Nova, 2000).

III. DECLARAÇÕES CONFESSIONAIS

· Além do pensamento dos reformadores suíços, outra fonte da teologia reformada são as declarações de fé articuladas pelos calvinistas nos séculos 16 e 17. Essas declarações são notáveis pelo seu número e variedade: a comunidade reformada formulou pelo menos 50 confissões de alguma importância nos primeiros 150 anos. Seus tópicos são os temas clássicos da teologia reformada: Deus e o seu senhorio, a autoridade das Escrituras, o pecado e a salvação, a eleição, os sacramentos, a vida cristã, questões éticas, etc. Muitos desses documentos abordam passagens clássicas da Escritura e da tradição cristã, tais como os Dez Mandamentos, a Oração do Senhor e o Credo Apostólico. Classificam-se em dois tipos de textos: (1) confissões de fé e (2) catecismos (estes geralmente na forma de perguntas e respostas). Alguns exemplos mais expressivos são os seguintes:

(a) Confissões de fé
· Sessenta e Sete Artigos (1523): apresentados por Zuínglio no primeiro debate teológico realizado em Zurique. Parágrafo introdutório: “Os artigos e opiniões abaixo, eu, Ulrico Zuínglio, confesso ter pregado na nobre cidade de Zurique, com base nas Escrituras, que são tidas como inspiradas por Deus”.

· Confissão de Genebra (1536): apresentada por João Calvino e Guilherme Farel às autoridades de Genebra em 10 de novembro de 1536. Distingue-se de documentos suíços anteriores por sua argumentação mais cuidadosa e perspectiva teológica mais consistente. Também se caracteriza por sua concisão e senso de autoridade. Aborda 21 tópicos, começando com a afirmação de convicções teológicas e concluindo com temas em disputa com os católicos.

· Confissão da Guanabara (1558): escrita por quatro huguenotes que fizeram parte da França Antártica, uma colônia francesa fundada na Baía da Guanabara por Nicolas Durand de Villegaignon. Com base nessa declaração de fé, o comandante condenou os calvinistas à morte, executando três deles. Esse valioso documento contém 17 parágrafos que tratam dos seguintes temas: a Trindade, os sacramentos, o livre arbítrio, a autoridade dos sacerdotes, casamento e celibato, intercessão dos santos e orações pelos mortos.

· Confissão Galicana (1559): adotada pela Igreja Reformada da França por ocasião do seu primeiro sínodo nacional, realizado nas proximidades de Paris. O principal autor do texto foi João Calvino.

· Confissão Escocesa (1560): redigida em quatro dias a pedido do Parlamento escocês como parte da reforma da igreja; foi escrita por uma comissão de seis membros, entre os quais o reformador João Knox (1505-1572).

· Confissão Belga (1561): escrita por Guido de Brès “para os fiéis que estão dispersos por toda parte nos Países Baixos”; foi adotada por um sínodo reunido em Antuérpia em 1566 e, com algumas modificações, tornou-se um documento oficial das igrejas reformadas holandesas, junto com o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort (as Três Formas da Unidade).

· Segunda Confissão Helvética (1566): escrita por João Henrique Bullinger a pedido de Frederico III, príncipe eleitor do Palatinado, na Alemanha. Em um tom moderado, apresenta o calvinismo como o cristianismo evangélico que está em harmonia com os ensinos da igreja antiga. Foi aceita oficialmente na Suíça, Alemanha, França, Escócia, Hungria e Polônia, e bem recebida na Holanda e na Inglaterra.

(b) Catecismos
· Instrução na Fé (1537): escrito por Calvino pouco depois de se radicar em Genebra, contém uma apresentação clara e serena dos pontos essenciais do seu pensamento inicial. Possui 33 seções, que abordam os mais diferentes tópicos.

· Catecismo de Genebra (1542): escrito por Calvino a pedido de várias pessoas, no início de sua segunda estada em Genebra. Foi um aperfeiçoamento do catecismo de 1537. Ao mesmo tempo, foi preparado um calendário indicando como o catecismo poderia ser aprendido e recitado num período de 55 semanas. Foi adotado pela Igreja Reformada da França e pela Igreja da Escócia.

· Catecismo de Heidelberg (1563): principal documento da Igreja Reformada Alemã. Foi escrito por dois teólogos, Zacarias Ursinus e Gaspar Olevianus, a pedido do príncipe Frederico III, do Palatinado. É um documento conciliador, combinando o calvinismo com um luteranismo moderado. É considerado um dos documentos reformados mais calorosos e pessoais, sendo adotado por muitas igrejas reformadas. Suas 129 perguntas e respostas distribuem-se em três partes: 1) Nosso pecado e culpa; 2) Nossa redenção e liberdade; 3) Nossa gratidão e obediência.

IV. O PURITANISMO

(a) Características

· O puritanismo foi uma das manifestações mais férteis e influentes do calvinismo em toda a sua história. Suas origens remontam aos primeiros reformadores ingleses e escoceses, mas o movimento claramente identificado surgiu no reinado de Elizabete I (1558-1603). Os puritanos receberam essa designação por insistirem na purificação da Igreja da Inglaterra em sua teologia, culto e forma de governo.

· Os puritanos incluíam alguns milhares de pastores ingleses, além de muitíssimos leigos. Eles eram solidamente calvinistas em sua teologia, mas infelizmente divergiram quanto à forma de governo eclesiástico, o que acabou por dividir e enfraquecer o movimento. Muitos deles eram simpatizantes do presbiterianismo, mas outros se inclinavam para os sistemas congregacional e episcopal. Enquanto muitos queriam permanecer na Igreja da Inglaterra, alguns se tornaram separatistas (independentes, batistas e outros grupos).

· Alguns traços distintivos do puritanismo são os seguintes:

(1)   Erudição e piedade: os puritanos valorizavam grandemente o estudo e a vida intelectual, ao mesmo tempo em que davam ênfase a uma espiritualidade rica e transbordante.

(2)   Cristianismo prático: davam ênfase à experiência religiosa, à conversão e ao contínuo auto-exame espiritual, mas também a uma piedade prática que se manifestava em todas as áreas da existência.

(3)   Preocupação ética: ênfase na santidade, tanto pessoal quanto comunitária (“santos no mundo”).

(4)   Centralidade da pregação: os puritanos foram grandes pregadores e expositores das Escrituras; com isso, a sua teologia acessível e prática penetrou em todos os níveis da sociedade inglesa.

(5)   Principais convicções: a salvação pessoal é uma dádiva exclusiva de Deus; a Bíblia é o guia indispensável para a vida; a igreja deve refletir o ensino expresso das Escrituras; a sociedade é um todo unificado. Também davam ênfase aos conceitos de lei e aliança e atribuíam grande importância ao Dia do Senhor (sabatarianismo).

· “A fidelidade da teologia puritana à revelação bíblica, sua abrangência, sua integração da teologia com outros tipos de conhecimento, sua profundidade pastoral e espiritual, seu êxito em criar uma tradição duradoura de culto, pregação e espiritualidade leiga fazem dela uma tradição de permanente importância no cristianismo de língua inglesa e nas igrejas reformadas mais amplas” (I. Breward).

(b) Teólogos representativos
· William Perkins (1558-1602), William Ames (1576-1633), Richard Sibbes (1577-1635), Thomas Goodwin (1600-1680), John Owen (1616-1683), Richard Baxter (1615-1691).

· Alguns herdeiros conhecidos da tradição puritana foram John Bunyan, Jonathan Edwards, Charles H. Spurgeon e, mais recentemente, D.M. Lloyd-Jones e J.I. Packer.

V. A ASSEMBLÉIA DE WESTMINSTER

(a) Contexto histórico

· A Assembléia de Westminster (1643-1648) foi um notável encontro de teólogos protestantes ocorrido durante a Guerra Civil Inglesa, na qual as tropas do rei Carlos I lutaram contra o exército parlamentar. Convocada pelo Parlamento, de maioria puritana, a Assembléia iniciou as suas atividades no dia 1° de julho de 1643, nas dependências da Abadia de Westminster, em Londres. Era composta de 121 dos mais hábeis pastores da Inglaterra, além de 30 membros do Parlamento. Todos os 121 teólogos eram membros da Igreja da Inglaterra e quase todos eram calvinistas. Os trabalhos se estenderam por cinco anos e meio, durante os quais houve mais de mil reuniões do plenário e centenas de reuniões de comissões e subcomissões.

· Logo que a Assembléia iniciou os seus trabalhos, as forças parlamentares começaram a enfrentar dificuldades na guerra. O Parlamento buscou o auxílio dos escoceses, que concordaram em ajudar sob uma condição – que todos os membros da Assembléia e do Parlamento assinassem um pacto solene comprometendo-se a manter e defender a Igreja da Escócia e a reformar a Igreja da Inglaterra e da Irlanda em sua doutrina, governo, culto e disciplina, de acordo com a Palavra de Deus, o que foi aceito.

· Os presbiterianos escoceses também puderam enviar representantes à Assembléia, quatro pastores e dois presbíteros, que participaram dos trabalhos sem direito a voto, mas exerceram uma influência desproporcional ao seu número. Logo que eles chegaram e foi assinado o pacto solene (setembro de 1643), houve uma mudança radical no trabalho da Assembléia. Até então, a idéia era revisar os Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana. Agora, passou-se a fazer uma reforma completa da igreja.

(b) Os documentos
· A Assembléia de Westminster caracterizou-se não somente pela erudição, mas por uma profunda espiritualidade. Gastou-se muito tempo em oração e tudo foi feito em um espírito de reverência. Cada documento elaborado era encaminhado ao Parlamento para aprovação, o que só acontecia após muita discussão e estudo. Os chamados “Padrões Presbiterianos” elaborados pela Assembléia foram os seguintes:

(a)    Diretório do Culto Público: concluído em dezembro de 1644 e aprovado pelo Parlamento no mês seguinte. Substituiu o Livro de Oração Comum. Também foi preparado o Saltério, uma versão metrificada dos Salmos para uso no culto (novembro de 1645).

(b)   Forma de Governo Eclesiástico: concluída em 1644 e aprovada pelo Parlamento em 1648. Instituiu a forma de governo presbiteriana em lugar da episcopal, com seus bispos e arcebispos.

(c)   Confissão de Fé: concluída em dezembro de 1646 e sancionada pelo Parlamento em março de 1648, após o acréscimo de referências bíblicas.

(d)   Catecismos Maior e Breve: concluídos no final de 1647 e aprovados pelo Parlamento em março de 1648.

(c) A Confissão de Fé e os Catecismos
· A Confissão de Fé compõe-se de 33 capítulos cujos temas podem ser classificados da seguinte maneira: a Escritura Sagrada (Cap. 1), o Ser de Deus e suas obras (2-5), o pecado e a salvação (6-8), a aplicação da obra da salvação (9-15), a vida cristã (16-21), o cristão na sociedade (22-24), a igreja e os sacramentos (25-29), a disciplina eclesiástica e os concílios (30-31), as últimas coisas (32-33). Entre os temas especificamente reformados estão os decretos de Deus, o pacto (das obras e da graça), o conceito de livre arbítrio, a vocação eficaz, a perseverança dos santos, a lei de Deus, os sínodos e concílios.

· O Catecismo Maior compõe-se de 196 perguntas e respostas e se divide em três partes: 1) A finalidade do homem, a existência de Deus e as Escrituras Sagradas (perguntas 1-5); 2) O que o ser humano deve crer sobre Deus (6-90); 3) Quais são os nossos deveres (91-196). Algumas seções especiais são: Cristo, o Mediador (36-56), os Dez Mandamentos (98-148) e a Oração do Senhor (186-196). O Breve Catecismo tem 107 perguntas e respostas. Sua parte central trata da lei de Deus e dos Dez Mandamentos.

VI. O CULTO REFORMADO

· Desde o início, uma das questões mais importantes e cruciais para a fé reformada foi o culto cristão e seus elementos correlatos, como a liturgia e a pregação. O tema será abordado aqui em quatro aspectos: (a) o culto cristão no sentido amplo; (b) o culto na perspectiva reformada; (c) a liturgia, ou seja, o conteúdo e a seqüência das partes do culto; (d) a pregação.

1. O culto cristão
· O culto cristão pode ser definido como a atitude interior de adoração a Deus, bem como a expressão exterior da mesma em palavras e atos individuais e comunitários. Portanto, o culto tem duas dimensões: uma interior e outra exterior; além disso, pode ser individual e corporativo (culto público).

· Tanto no seu aspecto pessoal quanto coletivo, o culto cristão tem a mais alta importância, por várias razões: (a) o objeto e a razão de ser do culto é Deus, a realidade última, o Ser Supremo; portanto, não pode haver atividade humana mais importante do que esta; (b) o culto é a manifestação mais visível e palpável da comunidade de fé, seja no Israel antigo, seja na igreja; (c) o culto é central para todas as outras atividades da igreja, servindo de sustentação e motivação para a comunhão, a educação cristã, as missões e o serviço.

· As características, elementos e princípios gerais do culto são expressos na Escritura Sagrada, embora não encontremos nela exemplos detalhados de uma liturgia ou ritual, isto é, de uma cerimônia de culto, seja no Antigo ou no Novo Testamento. Temos, todavia, todos os dados para elaborarmos uma teologia do culto.

· Antigo Testamento: o fundamento do culto de Israel está no seu relacionamento com Deus. Jeová formou Israel e o escolheu para ser o seu povo peculiar. Libertou-o do cativeiro egípcio, estabeleceu com ele a sua aliança e deu-lhe as suas leis. Escolhido, redimido e abençoado pelo Senhor, Israel deve servi-lo, obedecer-lhe e adorá-lo.

· “Jeová é o Deus vivo que entra na história dos homens e forma para si um povo com a finalidade de salvar o mundo. Israel, tirado da escravidão, deve a existência exclusivamente ao favor de Deus. Tendo sido escolhido para servir a Deus, somente tem sentido em função deste serviço; sua vocação primordial e impostergável será dar testemunho do Deus vivo perante o mundo... Cultuar a Deus consiste, em primeiro lugar, no reconhecimento da autoridade de Deus, absoluta e eterna”. (R. Martin-Achard)

· O culto devido a Deus pelo povo escolhido não está limitado a certos gestos rituais ou cerimônias religiosas, mas deve abranger todas as áreas da vida. Além disso, Deus não pode ser cultuado apenas exteriormente. Para honrar verdadeiramente a Deus, era necessário obedecer as suas leis, não apenas cerimoniais, mas também morais e éticas. Comparecer diante de Deus com sacrifícios, e ao mesmo tempo desprezar os seus requisitos de justiça, era insultá-lo (Is 1.11-17; Am 5.21-24).

· Um dos principais objetivos dos profetas era mostrar a Israel como Deus devia ser cultuado. Eles proclamaram ao povo que Jeová é um Deus zeloso, que requer para si um culto exclusivo. Não é possível servir a Jeová e a Baal. Além disso, Deus não se deixa comprar. Não o cegam os muitos sacrifícios nem os ritos pomposos. Ele rejeita um culto desmentido pela vida diária e repele as homenagens vindas de lábios hipócritas.

· “Em suma, servir a Deus significa encontrarmo-nos com Alguém que exige total obediência e absoluta submissão, porquanto reivindica ser o único Senhor de toda e qualquer vida, inclusive a nossa... Enquanto não vem o Reino, o culto é o venturoso lugar de encontro dos fiéis com o seu Deus”. (R. Martin-Achard)

· No AT, a palavra “culto” traduz uma palavra hebraica que significa “inclinar-se, prostrar-se”, uma postura indicativa de reverência e homenagem. O conceito de culto é expresso pelos termos “servir, serviço”. No culto do AT, o elemento mais destacado eram os sacrifícios, que visavam mostrar como um povo pecador podia aproximar-se de um Deus santo e justo. Os diferentes sacrifícios tinham o objetivo de fazer expiação pelos pecados, expressar gratidão e alegria, bem como ilustrar ao povo a importância de uma vida de santidade. Além disso, havia as diferentes festas, tais como Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos, todas as quais também faziam parte do culto a Deus.

· Novo Testamento: os principais termos gregos associados ao culto no NT são: (a)proskynéo = “prostar-se, adorar” (ver Mt 14.33; At 10.25-26; 1 Co 14.25); (b) latreúo(latreía) = “servir, serviço” (Mt 4.10; At 26.7; Rm 1.25; 12.1); (c) leitourgéoleitourgía = “servir, ministrar, serviço, ministração” (At 13.2; Rm 15.27; Hb 10.11; Lc 1.23; 2 Co 9.12; Fp 2.17,30; Hb 8.6; 9.21).

· A forma exterior do culto difere radicalmente daquela do Antigo Testamento. Visto que a morte de Cristo constituiu o sacrifício perfeito, não há mais necessidade de sacrifícios (Hb 9.11-12, 24-26). De fato, toda a instituição de templo, sacerdócio, sacrifício e purificação ritual se torna obsoleta. Antes, a própria igreja, isto é, todos os crentes, são o templo e o sacerdócio nos quais habita o Espírito Santo (1 Co 6.19; Ef 2.21-22; 1 Pe 2.9).

· O culto envolve duas partes: Deus e os adoradores. (a) O Deus que é adorado: o Deus vivo, o Senhor, o Criador, o Deus do Antigo Testamento, está presente no culto, está atento ao culto, conhece os corações, convida e responde, está pronto a ajudar, é um Deus imutável, deve ser louvado e glorificado. (b) Os cristãos que adoram: homens e mulheres de fé, amam a Deus, possuem um intelecto, têm uma mentalidade espiritual, possuem experiência, aproximam-se de Deus, não são arrogantes mas ousados, mostram unanimidade no culto, têm um espírito de expectativa, conhecem suas falhas como adoradores.

· Fundamentos do culto: (a) a experiência do perdão e da justificação; (b) a importância da devoção particular; o culto comunitário é vivo e vibrante quando procede de pessoas que adoram em particular (ver a experiência de Paulo: Rm 1.8-10; 1 Co 1.4; Gl 2.20); (c) outros princípios: continuidade, persistência, esforço, vigilância (Ef 6.18; Cl 4.2s), regularidade, mutualidade (Ef 5.19), valorização (Hb 10.25; 1 Co 11.22), reverência, decoro (1 Co 14.23,40; Ef 5.3; 1 Tm 3.15; Tt 2.10).

2. O culto reformado
· Na tradição reformada, o culto tem como objetivo primordial glorificar a Deus, o Deus santo, cuja salvação graciosa é um dom gratuito e imerecido. Um aspecto central desse culto é a gratidão. A liturgia reformada é dialógica: ouvimos sobre a graciosa misericórdia redentora de Deus e respondemos com gratidão. Charis e eucharistia.

· Para os primeiros teólogos reformados, eram muito importantes os quatro primeiros mandamentos do Decálogo, aqueles que falam dos nossos deveres para com Deus. Calvino observou que a primeira tábua da lei foi sintetizada por Jesus no primeiro e maior dos mandamentos, o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas (Mt 22.37; verInstitutas 2.8.11-34). Portanto, o culto fala do relacionamento de amor entre Deus e o seu povo, um amor pactual.

· Outro fundamento do culto reformado é a sua conexão com as Escrituras. Deus mesmo determinou que os seus filhos o adorem e revelou em sua Palavra as normas que devem reger esse culto. O puritano William Ames afirmou o princípio já presente em Agostinho e Calvino de que nada glorifica tanto a Deus como aquilo que vem de Deus. Assim, o nosso culto deve refletir a glória de Deus.

· Ao contrário de Lutero, que manteve no culto alguns elementos tidos como indiferentes (adiáfora), Zuínglio e Calvino pretenderam ater-se estritamente às Escrituras. Daí o chamado “princípio regulador” – o culto cristão deve se reger pelo que é clara e explicitamente revelado no Novo Testamento. Em contraste com isso, luteranos e anglicanos entendiam que o que não é proibido, é permitido. Daí o culto reformado caracterizar-se por maior austeridade e simplicidade que as liturgias dessas outras confissões protestantes.

· Todavia, existem particularidades do culto sobre as quais não existem instruções específicas da Escritura, devendo ser orientadas pela razão e pelo bom senso. É disse o que fala a CFW em seu capítulo 1°, parágrafo 6, especialmente na parte final: “... reconhecemos... que há algumas circunstãncias, quando ao culto a Deus e ao governo da igreja... as quais tem de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência crista, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser observadas”.

· Calvino acentuou os seguintes princípios para o culto:
(a)    Integridade bíblica e teológica (lex orandi, lex credendi)
(b)   Equilíbrio entre estrutura/forma e essência
(c)    Inteligibilidade, edificação
(d)   Simplicidade (sem pompa, teatralismo)
(e)    Flexibilidade (p.e., freqüência da Ceia do Senhor)
(f)     Participação congregacional (cânticos, salmos metrificados)

· No caso da flexibilidade, há o exemplo do próprio reformador de Genebra, que via com simpatia o ajoelhar-se para orar, mas não insistiu nisso como algo obrigatório. Ele também era favorável à celebração mensal da Ceia, porém acabou concordando com a preferência dos genebrinos, ou seja, quatro celebrações anuais (Natal, Páscoa, Pentecostes e em setembro). Em suma, os princípios básicos que regem o culto reformado são: precedente bíblico, simplicidade formal, música congregacional com conteúdo doutrinário e centralidade da pregação e dos sacramentos.

· Como o objetivo principal do culto é exaltar e glorificar a Deus, e não agradar os participantes, existe a necessidade de reverência. Todavia, o culto também visa suprir necessidades legítimas da congregação. Daí decorre a importância da pregação no culto reformado. A pregação autêntica deve ser bíblica, doutrinária e prática, isto é, relacionada com a vida. O culto deve refletir um saudável equilíbrio entre intelecto e sentimento, mente e coração. Um belo exemplo desse equilíbrio foi a vida do pastor e teólogo reformado Jonathan Edwards (1703-1758).

· Quanto à música, segundo Augustus N. Lopes, nunca é demais acentuar que a teologia de uma igreja é influenciada pela música que ela canta. Pastores podem pregar sermões doutrinariamente corretos, mas se as suas igrejas cantarem hinos e cânticos heterodoxos, esses últimos influenciarão mais que as palavras do pastor.

· A tendência atual de se substituir os antigos hinos utilizados por gerações de crentes por cânticos com ritmos mais contemporâneos corre dois sérios riscos: primeiro, a perda do sentido da história, a ruptura da nossa ligação com a igreja do passado; em segundo lugar, há o fato de que muitos desses cânticos, além de sua pobreza melódica, poética e gramatical, padecem de sérias distorções teológicas ou são simplórios e repetitivos, trazendo muito pouca instrução para o povo de Deus, ao contrário dos hinos tradicionais da igreja, com todo o seu rico conteúdo bíblico e doutrinário. Precisamos de hinos que sejam condizentes com a nossa cultura, mas que tenham solidez bíblica e teológica.

3. A liturgia do culto

(a) Noções gerais

· “Liturgia” se refere ao que é dito no culto público, quer venha de um livro de orações ou espontaneamente do coração. “Ritual” pode ser entendido como aquilo que é feito no culto público, seja de acordo com normas escritas ou de maneira livre. Por exemplo: A congregação se levanta para cantar? Se ajoelha para orar? O pão e o vinho são levados aos comungantes ou estes vão até a frente para recebê-los? Algum ritual é inevitável. O que se deve evitar é o ritualismo.

· Muitos estudiosos entendem que os salmos (ou pelo menos alguns deles) eram composições litúrgicas para ocasiões festivas ou para momentos religiosos especiais na vida dos adoradores. Um exemplo interessante é o Salmo 24, que descreve uma procissão de adoradores que se aproxima do templo no monte Sião. Quando se aproximam, eles bradam (v. 3); outro personagem, um sacerdote ou o porteiro do templo, responde com a fórmula de entrada (v. 4-5); um dos líderes dos peregrinos expressa a sinceridade do seu grupo (v. 6). A próxima seção pode estar relacionada com uma procissão festival que se aproximava do templo levando a arca da aliança como símbolo da presença de Jeová (v. 7-10). Outros tipos de salmos são: liturgias da arca, cânticos de Sião, cânticos de peregrinação, salmos reais, ações de graça, salmos penitenciais.

· O culto do NT não se baseia nas cerimônias rebuscadas do templo, mas no ritual simples da sinagoga. “As primeiras reuniões e locais de encontro dos cristãos seguiam o modelo das sinagogas” (Paul P. Levertoff). O culto diário da sinagoga no primeiro século AD provavelmente começava com uma invocação: “Bendizei ao Senhor, que deve ser louvado”. Vinha então a recitação do credo, o Shemá (Dt 6.4-9; 11.13-21; Nm 15.37-41). Isso era acompanhado de quatro bênçãos, duas antes e duas depois do Shemá. A seguir, havia a Tephilah, uma oração na forma de bênçãos. Nos sábados e dias santos, eram então lidas as Escrituras Hebraicas, cada dia tendo duas passagens, uma do Pentateuco e outra dos Profetas. Com freqüência isso era seguido de uma exposição da passagem por uma pessoa qualificada (ver Lc 4.20-27; At 13.15-41). Os salmos também eram utilizados, especialmente os do Hallel (113-118, 146-150).

· Alguns estudiosos, especialmente Ralph Martin, detectaram uma “ordem de culto” simples em 1 Ts 5.16-24. Outros indícios podem ser encontrados em Atos 2.42-47. Alguns testemunhos antigos sobre o culto cristão estão presentes em Justino Mártir (I Apologia), em Tertuliano e na Didaquê, com as suas belíssimas orações litúrgicas para a celebração da Ceia do Senhor. Na Idade Média, o culto se tornou cada vez mais formal e ritualístico.

(b) A liturgia reformada
· Historicamente, as igrejas reformadas têm se recusado a adotar uma liturgia fixa. Ao mesmo tempo, insistem que o culto não deve ser aleatório, totalmente espontâneo, entendendo que as Escrituras estabelecem normas para o culto. Por exemplo, os elementos constitutivos do culto estão claramente prescritos na Bíblia. Os principais elementos do culto reformado são a música, as orações, a Palavra (mais especificamente o sermão) e os sacramentos.

· Os reformadores não chegaram a ser inovadores em matéria de liturgia. Eles herdaram o culto da sua igreja de origem e, em grande parte, retiveram a forma tradicional da liturgia. Seu interesse maior estava na área da teologia. Assim sendo, eles corrigiram a teologia, simplificaram as formas e restauraram a participação congregacional. Todavia, a estrutura básica do culto foi mantida, iniciando com o rito de confissão, passando pelas leituras da Escritura e as orações dos fiéis, e concluindo com a celebração eucarística.

· David G. Buttrick observa que a história da liturgia reformada é uma história de três cidades: Estrasburgo, Zurique e Genebra. O culto reformado começou em Estrasburgo em 1524 com uma liturgia em alemão que incluía uma confissão comum, o cântico congregacional de salmos e sermões bíblicos na forma de lectio continua. Martin Bucer fez modificações nesse culto, acrescentando intercessões e uma exortação didática antes da Ceia. Em seu livro Grund und Ursach (1524), que se tornou um manual para o culto na tradição reformada, ele argumentou que o culto deve ser fundamento em “afirmações claras e diretas da Escritura Sagrada”.

· Em 1524, Zuínglio escreveu um opúsculo atacando a missa católica. No entanto, ele era liturgicamente conservador e por algum tempo reteve o uso do latim, do cerimonial, de vestes litúrgicas, etc. Sob pressão, ele eliminou das igrejas as imagens, relíquias e ornamentos. As paredes foram caiadas e os órgãos retirados para que os adoradores pudessem se concentrar somente na Palavra de Deus. No ano seguinte, a missa foi abolida, sendo criado um novo culto que incluía orações, leitura das Escrituras e pregação. A maior transformação foi o entendimento radicalmente novo da Ceia do Senhor.

· A tradição zuingliana alcancou Genebra por meio de Guilherme Farel. Ele preparou La manière et fasson (1524), um manual de culto baseado nas práticas de Basiléia e de Zurique. Essa liturgia dava mais ênfase à pregação do que à Ceia do Senhor. Foi esse o culto que Calvino encontrou em Genebra ao chegar à cidade em 1536. Sob a influência desse reformador, foram eleborados os “Artigos concernentes à organização da igreja e do culto em Genebra”.

· Durante sua estada em Estrasburgo, ele tomou conhecimento das alterações litúrgicas feitas por Bucer e preparou uma liturgia e um saltério metrificado para a sua igreja de refugiados franceses. Ao retornar a Genebra, levou consigo a liturgia de Estrasburgo, que publicou sob o título A Forma das Orações. Como já havia feito antes, voltou a insistir na celebração semanal da Ceia do Senhor, o que não foi aceito.

· A estrutura do culto de Estrasburgo adotado por Calvino era a seguinte:
(a)    Chamado à adoração: Salmo 124.8
(b)   Confissão de pecados
(c)    Declaração de perdão
(d)   Mandamentos cantados com o Kyrie Eleison
(e)    Oração de iluminação
(f)     Texto bíblico e sermão
(g)    Ofertório
(h)    Intercessões
(i)      Oração do Senhor parafraseada (omitida quando havia Ceia)
(j)     Credo Apostólico durante a preparação dos elementos
(k)   Oração eucarística
(l)      Palavras de instituição
(m)   Restrição do acesso à mesa
(n)    Recitação de promessas
(o)   Sursum corda (corações ao alto)
(p)   Comunhão
(q)   Salmo 138
(r)     Oração de ação de gracas
(s)    Nunc dimittis (cântico de Simeão)
(t)     Bênção de Arão (Nm 6.24-26)

· Calvino afirmou: “Nenhuma reunião da igreja deve ocorrer sem a Palavra, orações, participação da Ceia e ofertas” (Institutas 4.17.44). As orações incluíam os cânticos ou orações cantadas: dos salmos, dos mandamentos, do Credo e do Cântico de Simeão após a Ceia.

· A Assembléia de Westminster preocupou-se em estabelecer normas detalhadas para o culto a Deus. A Confissão de Fé, no Cap. 21 (“Do culto religioso e do domingo”), tem instruções valiosas sobre como adorar a Deus, a quem se deve adorar, onde se deve adorar, a oração e os outros elementos do culto. Ver também o Diretório do Culto de Westminster.

· Quanto às liturgias reformadas, há um antigo mas excelente estudo histórico de Charles W. Baird, A Liturgia Reformada (1855), traduzido há poucos anos para o português (Socep, 2001). O ensaio aborda as práticas litúrgicas de Calvino em Genebra, a liturgia das igrejas reformadas da França e da Escócia, o culto dos puritanos e a liturgia das igrejas da Holanda e do Palatinado (Alemanha). Ver “A última comunhão de Calvino” (p. 39) e momentos finais de Knox (p. 53).

· O livro Reforma Hoje (Cultura Cristã, 1999) tem dois bons capítulos sobre a questão do culto: “A reforma do culto” (W. Robert Godfrey) e “A reforma no culto, na doutrina e na vida” (James M. Boice). Tratam das distorções do culto evangélico/reformado e da necessidade de um retorno aos fundamentos bíblicos do culto.

· O culto, sendo um elemento tão central e visível, é de crucial importância para a igreja. É também um fato de identidade e unidade das igrejas que pertencem à mesma confissão. Infelizmente, as igrejas presbiterianas do Brasil estão desunidas nesse ponto crucial. Elas não têm dado um testemunho unânime sobre as suas convicções nessa área. Muitos pastores e igrejas locais têm feito modificações profundas em sua liturgia, movidos muitas vezes por considerações pragmáticas, deixando de lado a história e a teologia do culto reformado. A Constituição da IPB insiste na responsabilidade dos pastores nessa área: Art. 31, inciso “d”. Ver também Princípios de Liturgia, Cap. III (Culto Público).

4. A pregação

(a) Panorama histórico

· A pregação sempre foi importante na tradição judaico-cristã, a começar do Antigo Testamento, com os profetas. Mais tarde, no culto da sinagoga, surgiu a pregação expositiva e sequencial das Escrituras. A pregação também teve um lugar saliente no ministério de Jesus, dos apóstolos e da igreja primitiva. No cristianismo antigo houve grandes pregadores, como Orígenes, que pregava um livro da Bíblia após o outro, tanto do AT quanto do NT, capítulo por capítulo e versículo por versículo.

· Outros grandes pregadores patrísticos foram, entre os gregos, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nazianzo e especialmente João Crisóstomo (o “boca de ouro”). Seus sermões foram notáveis pelo tratamento sistemático da Bíblia, aplicação moral e coragem profética. No Ocidente latino destacaram-se como pregadores Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona.

· Na Idade Média houve um declínio acentuado da pregação bíblica. Alguns dos pregadores mais destacados foram monges missionários como Patrício, Columba, Columbano e Bonifácio. A situação começou a melhorar a partir da época de Carlos Magno e seu ministro Alcuíno, no século 9°. A partir do século 12 houve um forte reavivamento da pregação com o surgimento das ordens franciscana e dominicana. Domingos, Francisco de Assis, Antônio de Pádua, Alberto Magno e Boaventura foram grandes pregadores católicos.

· Com o advento do protestantismo, a pregação voltou a ocupar um lugar central na atividade da igreja e no culto cristão. Martinho Lutero retomou o antigo método de pregação expositiva e foi um pregador eloquente e apaixonado. Ulrico Zuínglio, inspirado pelo exemplo de Crisóstomo, começou a pregar o Evangelho de Mateus, capítulo por capítulo. João Ecolampádio, também seguindo Crisóstomo, exortou os pregadores a adotarem a exegese histórico-gramatical e a abandonarem a exegese alegórica tão popular na Idade Média. João Calvino foi um mestre na arte da interpretação bíblica. Seus sermões são simples, claros e instrutivos. João Knox também se destacou como um pregador de grande impacto.

· Os sermões de Lutero formam vinte volumes, os de Calvino, quarenta, e Bullinger, o sucessor de Zuínglio, pregou a Bíblia inteira em pouco mais de quinze anos. A maior parte dos reformadores pregou no sistema lectio continua, expondo as Escrituras passagem após passagem.

· Todavia, foi com o movimento puritano que a pregação bíblica chegou ao seu ponto mais alto na tradição reformada. Seus representantes mais conhecidos na Inglaterra foram William Perkins, John Preston, Richard Sibbes, Richard Baxter, Edmund Calamy, Thomas Goodwin, Thomas Watson, Thomas Manton, John Flavel, e, na América do Norte, John Cotton, Thomas Shepard e John Davenport. Outros grandes pregadores e evangelistas calvinistas nos séculos 18 e 19 foram George Whitefield, Jonathan Edwards, Gilbert Tennent, Samuel Davies, Thomas Chalmers e Charles Haddon Spurgeon.

(b) Teologia da pregação
· É interessante a maneira como os reformadores relacionaram a pregação com a Palavra e o Espírito. Em contraste com os entusiastas, segundo os quais o Espírito era um dom imediato concedido à alma humana de modo independente da Palavra e dos sacramentos, Lutero insistiu que o Espírito era dado por intermédio da Palavra: “A Palavra, eu afirmo, e somente a Palavra é o veículo da graça de Deus”. Lutero parece identificar a pregação e a Escritura como sendo “Palavra de Deus”. A voz de Deus é ouvida em ambas. Em outros termos, a pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus.

· Zuínglio faz uma distinção mais nítida entre a Palavra e o Espírito. A pregação é um testemunho humano sobre Cristo que visa levar-nos a buscar a verdadeira Palavra de Deus interior, dada pelo Espírito. Ele distingue claramente entre a Palavra de Deus externa, que é a pregação humana, e a Palavra de Deus interna, o Espírito Santo (Jo 6.44). A pregação pode apontar para Cristo, mas somente o Espírito conduz a ele.

· Calvino ocupa uma posição intermediária entre os dois primeiros reformadores. Embora os pregadores sejam humanos, todavia a pregação é a vontade de Deus para a igreja e, instigada pelo Espírito, é a boca de Deus se dirigindo a nós. “[Deus] se digna a consagrar a si mesmo as bocas e línguas de homens a fim de que a sua voz possa ressoar nelas” (Institutas 4.1.5). Como Zuínglio, Calvino acentua a origem bíblica da pregação e o testemunho interno do Espírito Santo, mas insiste que o Espírito é dado na pregação ao invés de ficar aguardando oculto no coração.

· O poder da pregação vem do Espírito Santo, que é também o verdadeiro intérprete da Escritura. Se o Espírito não estiver com a Palavra, os sermões, por eloquentes que sejam, serão vazios e totalmente ineficazes. Embora a fé venha pelo ouvir e sem a Palavra a fé seja impossível (Rm 10.17), ela é um dom do Espírito, que abre os ouvidos para ouvir as promessas de Deus. A pregação é um ato humano que não possui nenhuma eficácia intrínseca. Mas quando Deus escolhe a pregação, então ela certamente é o poder de Deus para a salvação.

· A pregação é essencial porque por meio dela Cristo vem a nós com todas as suas graças salvadoras. Entre os benefícios graciosos que recebemos através da pregação estão a união com Cristo, o perdão e a santificação. Ela é também o meio pelo qual Jesus Cristo exerce a autoridade sobre a sua igreja e sobre o mundo. Por isso, a igreja tem a responsabilidade de ouvir os sermões de modo ativo e inteligente.

· Calvino insistiu que a pregação é especificamente uma explanação e aplicação da Escritura. Os pregadores devem ser versados nas Escrituras. Eles são embaixadores da Palavra e, portanto, devem ser santos, perceptivos, preparados e, acima de tudo, bons mestres. Eles são os “ministros da Palavra de Deus”.

· Por causa da importância da Palavra, a pregação se tornou o elemento central do culto reformado, ao lado da ministração dos sacramentos. O culto tinha duas partes: a liturgia da Palavra e a liturgia da Mesa do Senhor. A pregação se caracterizava pelos seguintes atributos: bíblica, expositiva, doutrinária e prática. A fiel exposição das Escrituras veio a ser considerada a primeira das “marcas da igreja”.

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