Paradoxos da fé
Na famosa definição de Hebreus, a fé é “a certeza daquilo que esperamos e
a prova das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Tomada fora do contexto e
de modo descomplicado, essa definição pode enganar um pouco no aspecto
dessa “certeza” e dessa “convicção” sobre a qual fala o texto. Que tipo
de certeza é essa? Em que se baseia tal convicção? A tese de Hebreus 11,
no verso 1, perde muito de seus sentidos possíveis se desatrelada de
todo o texto. Minha intenção não é fazer uma exposição do texto, e sim
apontar alguns paradoxs da fé importantes nele.
O primeiro é o paradoxo da fé entre a certeza e a incerteza. Do
que a fé é pode ser certa? Daquilo que, do ponto de vista humano,
aparenta ser o mais incerto. A fé, por exemplo, é certa da existência de
Deus, não porque Deus tenha se mostrado de maneira clara por meio de
evidências ou provas, e sim porque, na linguagem de Tillich, esta pessoa
foi tomada pelo incondicional e o eterno. Como diz Kierkegaard (2012,
p. 77): “A fé é antecedida por um movimento de infinito; é apenas então
que ela surge, nec inopinate, em razão do absurdo”. Tillich
(1957, p. 65), de modo semelhante, também afirma que “todo ato de crer
pressupõe participação naquilo para que está dirigido. Sem uma
experiência anterior do incondicional não pode haver fé no
incondicional”.
O cientista tem provas de uma realidade na medida em que essa
realidade se dá a investigar, e então ele tem uma certeza objetiva. O
médico pode chegar a ter certeza sobre as origens de uma doença X,
porque os exames que ele fez provaram que ela veio da ação de uma
bactéria Y. Na fé não é assim. A fé não é apenas certeza do mais
incerto, como certeza que se sustenta sob condições incertas. Hebreus
diz que quando Deus chamou Abraão, por exemplo, este se dirigiu “a um
lugar que mais tarde receberia como herança, embora não soubesse para
onde estava indo” (11.8). Abraão partiu na certeza da promessa, no
entanto, sem saber. Creu para essa existência, mas não obteve o que
esperava nessa existência. Creu porque foi movido pelo incondicional, e
porque teve a coragem da fé e o risco de suportar suas eventuais dúvidas
e incertezas. E, como diz Tillich (1957, p. 15), “é suportando
corajosamente a incerteza que a fé demonstra o mais fortemente o seu
caráter dinâmico”.
O segundo é o paradoxo da fé entre o visível e o invisível. Já
disse anteriormente que o fundamento da fé (o incondicional) se
encontra além da concreticidade dos fatos, portanto, além do que os
olhos podem ver, de modo que a testemunha ocular, digamos, de um
milagre, não necessariamente se torna um discípulo. Como disse Ariovaldo
Ramos (2015) recentemente, “milagre não gera fé, gera festa”. Hebreus
diz que a fé é “prova das coisas que não vemos”. Então “fé”, nesse
sentido mais estrito, significa confiança naquilo que não se pode ver,
ao que não se tem acesso imediato.
Tomemos o exemplo de Moisés (11.23-29). O texto diz que, ao
abandonar as riquezas e pompas do palácio no Egito, Moisés “permaneceu
firme como quem vê o que é invisível” (v. 27). Ora, a própria ideia de
“ver o invisível” já é um paradoxo. Logo, os olhos que “viram” não são
estes humanos, mas os da fé, que se cria a partir da visão do
inexistente porque “vê além”. Aqui facilmente alguém pode se recordar do
que Jesus disse a Tomé, segundo o evangelho de João. Depois que este o
viu e tocou em sua mão e em seu lado, declarou “Senhor meu e Deus meu”.
Vendo aquilo, Jesus replicou: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados
os que não viram e creram” (Jo 20.26-29). “Assim, a fé crê no que não
vê” (Kierkegaard, 2008, p. 118)
O terceiro é o paradoxo da fé entre a promessa e a realização. Chegamos
a culminância dos outros dois paradoxos: o discípulo, que tem a
confiança certa nas condições mais incertas, que crê naquilo que não vê,
mas espera ansiosamente, deve também, como os “heróis da fé” de
Hebreus, acreditar e viver segundo orienta a promessa, sabendo, porém,
que pode não chegar a experimentá-la em vida. Quando pensamos na figura
do herói no sentido hollywoodiano, a imagem que mais comumente surge é
de poder, luta, com eventuais contratempos, mas sabendo que, no fim, o
triunfo é certo, pois o herói sempre vence. Sem muita consciência
projetamos essa imagem na vida, e não diferente na vida de fé. Nutrimos a
certeza de que aquele que plantou o bem, lutou para alcança-lo,
trabalhou duramente para sua conquista, ao final, será recompensado.
Entretanto, a realidade é mais complexa que isso. Eclesiastes tentou nos
alertar a esse respeito ao concluir que a vida é miserável, fugaz,
cheia de sofrimento e sem sentido; que a sabedoria pode trazer vida, mas
nem por isso o sábio está garantido em comparação com o tolo, às vezes a
vida vira do avesso, e vemos o sábio sofrendo muito enquanto o tolo,
apesar de suas tolices, só se dá bem. Ele também diz que sol nasce para
todos e o fim é o mesmo para todos, pobres ou ricos, sábios ou tolos,
justos ou injustos. E que, durante a vida, “cedo ou tarde, a má sorte
atinge a todos. Ninguém pode prever a desgraça. Como peixes capturados
numa rede cruel ou pássaros numa gaiola, os homens e as mulheres são
capturados pelo mal acidental e repentino” (Ec 9.11-12, A Mensagem).
Podemos discordar, ficar bravos e profundamente incomodados com
Eclesiastes, e com certa dose de razão, afinal, geralmente não somos
preparados para lidar com as más notícias – nem pela família, tampouco
pela sociedade ou pela religião –, apenas com as boas, como se o
otimismo e o pensamento positivo nos garantissem vitória e vida longa.
Contudo, de nada adianta espernear, fechar os olhos ou negar a
realidade. Quem pensa que a vida de fé pode blindá-lo contra o
sofrimento, facilmente envereda pela rua do engano e da ilusão.
Primeiro, porque não há nenhuma garantia cósmica de que ter fé é ter
proteção e segurança; segundo, porque não há nenhuma garantia bíblica,
no sentido global, que sugira isso. Muito pelo contrário. Andar nos
caminhos da fé, por sua própria natureza e pela natureza da vida,
implica em enfrentar dificuldades várias, como foi o caso dos
anti-heróis de Hebreus. Experimentaram, sim, a proteção divina em
algumas circunstâncias e até viram algumas promessas sendo cumpridas,
mas também “enfrentaram abusos, açoites e, sim, algemas e prisões”;
alguns “foram apedrejados, serrados ao meio, assassinados a sangue
frio”. Vaguearam pela terra, sem teto, força ou amigos, “vivendo como
podiam nas periferias cruéis do mundo”, que, como diz o autor, não era
digno deles! (11.32-38, A Mensagem).
E o autor de Hebreus finaliza claramente expressando o paradoxo em
questão: “Entretanto, nenhum desses exemplos de fé puseram a mão na
recompensa prometida. Deus tem um plano melhor para nós: que nossa fé se
junte à deles, para formar um todo completo, como se a vida de fé que
eles tiveram não fosse completa sem a nossa” (11.39-40, A Mensagem).
Caminhar na fé, segundo Hebreus, implica em lançar-se nos paradoxos sem
seguro de vida ou de triunfo. Aliás, Kierkegaard foi taxativo e um tanto
duro a esse respeito, seguindo a lógica ilógica de Hebreus, quando
disse que:
Em verdade, se ocorresse à fé alguma vez a ideia de avançar assim, triunfalmente en masse,
então ela não precisaria autorizar alguém a cantar refrões satíricos,
porque de nada adiantaria proibi-lo a todos. Mesmo que os homens
emudecessem, ouviríamos sobre esta louca procissão uma risada estridente
como aqueles sons zombeteiros que a natureza faz ouvir no Ceilão; pois a
fé que triunfa é a mais ridícula de todas as coisas. Se a geração
contemporânea de crentes não teve tempo de triunfar, nenhuma outra o
conseguirá; pois a tarefa é a mesma, e a fé é sempre militante; mas
enquanto ainda houver luta haverá a possibilidade de derrota, e por
isso, no que concerne à fé, jamais se triunfa antes do tempo, ou seja,
jamais se triunfa no tempo [...]. (Kierkegaard, 2008, p. 152-153).
Que vantagem há na fé? Que proveito ela, porventura, traz? Afora as
promessas falsas provenientes de uma falsa piedade – porque apartada da
vida real –, a resposta honesta pode ser: nenhuma! E quem disse que a fé
tem a ver, primordialmente, com vantagem e com proveito? Se algum
proveito há na fé – claro que estou falando aqui da fé cristã – esse não
está primeiramente voltado para a pessoa em si, mas para o próximo da
fé, tanto no presente, quanto no futuro, pois a fé que vive no paradoxo
se concretiza de várias formas já, só que plantando sementes para a
eternidade. O final do capítulo 11 de Hebreus é sugestivo de que a fé do
discípulo não é fé em si ou para si, mas é fé para a posteridade, é a
fé que cresce e amadurece nos outros. É, nesse sentido, uma dádiva, um
bem comunitário, um tipo de fé que se forja na junção do si mesmo e
do/com o outro. Ali germina, ali cresce, e dali se expande para a
eternidade.
Jonathan
Referências bibliográficas
KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
_______. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
PETERSON, Eugene. A Mensagem. Bíblia em linguagem contemporânea. São Paulo: Editora Vida, 2011.
RAMOS, Ariovaldo. Convergir. Palestra proferida na Soul Igreja Batista, Rio de Janeiro, 15/09/2015. Ver: . Acesso em 16 set. 2015.
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 4ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1957.