Os riscos da nova edição de “Mein Kampf”, de Hitler, em tempos de racismo e xenofobia
Publicado na DW.
Para alguns, é um cenário de pesadelo; para outros, a tão esperada conclusão de um árduo projeto: a partir de 1º de janeiro de 2016, o libelo de Adolf Hitler Minha luta (Mein Kampf) estará à venda nas livrarias alemãs. Especificamente: uma edição crítica comentada, na qual historiadores renomados colocam o texto no contexto da época e o explicam para os leitores de hoje.
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No entanto, seu conteúdo ainda agita os ânimos na Alemanha, tendo sido tema de longas discussões nos últimos anos, tanto no Bundestag (câmara baixa do Parlamento) como no Conselho Central dos Judeus ou na Associação dos Historiadores Alemães.
Os direitos autorais de Minha luta para toda a Europa, detidos pelo estado da Baviera, prescrevem 70 anos após a morte do autor (Como se sabe, Hitler se suicidou em 30 de abril de 1945, ao reconhecer que não tinha como vencer a Segunda Guerra Mundial). Assim que 2015 acabar, portanto, o escrito cai em domínio público. Isso significa que, ao menos em tese, qualquer um pode imprimir, distribuir e vender novas edições.
Até agora, apenas uma editora ousou aproveitar a liberalização: o Instituto de História Contemporânea (IZF) de Munique, cujos especialistas começaram em 2009 a elaborar uma versão histórica comentada.
“Não seria bom, para não dizer irresponsável, deixar esse texto circular de forma mais ou menos livre e estar disponível por toda parte”, disse à DW o diretor do instituto, Andreas Wirsching, sobre a motivação da equipe. “Trata-se de esclarecimento: esta edição contém muitas informações novas, ajudando a entender melhor o texto, trecho por trecho, e, idealmente, também a se ter uma melhor noção da história do nazismo.”
Um libelo e seus mitos
Embora na Alemanha muito se fale sobre Minha luta, quase não há saber fundamentado a respeito: mesmo sendo o único documento de cunho autobiográfico do líder do nazismo, faltam análises mais aprofundadas sobre a origem, estrutura e, principalmente, sobre as repercussões desse panfleto em sua época.
Até hoje se mantém a lenda do “best-seller não lido”. Supostamente milhões o teriam comprado ou recebido de presente, mas a maioria não o leu – e, portanto, não poderia também saber que crimes Hitler planejava. Essa era a estratégia de justificação de muitos alemães depois da Segunda Guerra.
Contrapondo-se a esse mito, Wirsching afirma que, a partir de Minha luta, é possível deduzir que papel Hitler de fato desempenhava em numerosos temas. Este é o caso, por exemplo, da ideia de uma guerra pelo assim chamado “espaço vital” (Lebensraum) no Leste Europeu – concretizada na invasão da Polônia, em 1939, e da União Soviética, dois anos mais tarde.
O mesmo se aplica aos temas antissemitismo, esterilização compulsória e eutanásia. Todos esses crimes, que mais tarde seriam cometidos, já são delineados no libelo de Hitler publicado entre 1924 (primeiro volume) e 1927 (segundo volume).
Assim, segundo Wirsching, os comentários na edição de 2016 teriam funções múltiplas. Eles esclarecem sobre as constelações, personagens e contextos históricos, mas também se trata – o que talvez seja o mais importante – “de interromper Hitler, que aqui fala quase que ininterruptamente, como o demagogo que é. Ou seja, de desmascarar suas meias-verdades, alusões com fim de agitação popular, suas mentiras deslavadas – das quais há um bom número.”
Além disso, trata-se de traçar conexões com os acontecimentos históricos futuros, já que “muito do que Hitler escreve em Minha luta se transforma numa realidade brutal após 1933″, ano em que os nazistas chegariam ao poder na Alemanha.
Baviera apoia, mas se retira do projeto
De início, o instituto contava para o projeto com o apoio financeiro da Baviera, atual detentora dos direitos autorais e editoriais de Minha luta. Após a Segunda Guerra Mundial, os Aliados haviam transferido para esse estado alemão esse direitos, até então em mãos da editora Eher, de propriedade do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), de Hitler. Desde então o governo bávaro tem usado suas prerrogativas legais para impedir reimpressões – e assim, segundo argumenta, a propagação da ideologia nazista.
Em determinado momento, porém, a Baviera suspendeu seus subsídios. O principal motivo foram as críticas de Israel e da então-presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, Charlotte Knobloch. “O escrito de Hitler está permeado de ódio e desprezo humano e, segundo especialistas, constitui crime de incitação ao ódio”, afirmou ela na época.
Wirsching diz compreender e concordar com o argumento de que se deve respeitar a dignidade das vítimas. “E nós também fazemos isso. Mesmo assim, na época não foi nada fácil para nós enfrentar essa guinada de 180 graus”, que forçou o IZF a procurar novos patrocinadores para o projeto.
Quem vai ler Minha luta?
Diante da prescrição iminente dos direitos autorais, no entanto, uma outra questão se impõe, além de se deve-se publicá-lo e como: quem vai ler Minha luta?
Serão os assim chamados “cidadãos enfurecidos”, que povoam as passeatas do Pegida (acrônimo em alemão para “Europeus patriotas contra a islamização do Ocidente”), esse movimento cujos slogans xenófobos são atualmente motivo de preocupação para tantos alemães? Gente que porta cartazes dizendo “Lügenpresse” (“imprensa da mentira”), expressão proveniente do tempo do nazismo? Ou mesmo funcionários do partido de extrema direita NPD, cuja legenda está sob ameaça de novo processo de proibição em 2016?
Há tempo longos trechos do manifesto de Hitler estão disponíveis gratuitamente na internet, sem que a Justiça alemã possa fazer muita coisa para impedir isso. Em plataformas de internet que operam legalmente no país, como o eBay, antiquários oferecem edições históricas da publicação. Lê-lo nunca foi proibido, somente publicá-lo.
“Em sentido restrito, o livro Minha luta não representa um perigo iminente”, opina Wirsching. Mas ele tem um forte efeito simbólico. “É claro que, lamentavelmente, antissemitismo e racismo são temas que não perderam totalmente o significado, hoje em dia. Não se pode descartar totalmente que uma ou outra citação do livro seja assimilada.”
Impossível prever quem lerá, no futuro, o libelo de Hitler: o que haverá é a nova possibilidade de lê-lo criticamente numa edição comentada. Aliás, continua passível de persecução judicial todo aquele que fizer citações de Minha luta sem atentar para o contexto histórico: a acusação de incitação ao ódio segue valendo.
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