A RELEVÂNCIA DA TEOLOGIA DE CALVINO PARA O SÉCULO 21
Lyle D. Bierma*
Introdução
No seminário norte-americano em que eu e o professor Carl Bosma ensinamos – Calvin Theological Seminary – eu leciono uma matéria intitulada “Teologia Cristã Global”. Nessa matéria nós lemos livros e ensaios escritos por teólogos de fora da Europa e da América do Norte – teólogos da África, Ásia e América Latina. Muitos desses escritos são bastante críticos da teologia do Ocidente (Europa e América do Norte). Por exemplo, alguns teólogos evangélicos latino-americanos que nós temos lido afirmam que os missionários protestantes trouxeram para a América Latina uma teologia avivalista e negadora do mundo vinda diretamente do evangelicalismo americano. A preocupação básica dessa teologia era a alma, não o corpo; a salvação individual, não mudanças sociais; a vida futura, não a vida aqui na terra. O evangelho que esses missionários trouxeram estava voltado somente para as necessidades “espirituais” dos seres humanos. Abordar coisas que estivessem fora dessa esfera espiritual seria recair no liberalismo teológico e em um tipo de evangelho social. Segundo esses críticos, a teologia ocidental nunca se contextualizou adequadamente na América Latina. Em conseqüência disso, não emergiu nenhuma teologia autóctone na América Latina até o surgimento da teologia da libertação nos anos 60 e 70. O protestantismo ocidental, e a teologia que fazia parte do mesmo, era simplesmente mais uma religião imposta a esta parte do mundo. Ele não abordou nem refletiu com seriedade o contexto latino-americano para o qual havia vindo.
Esses teólogos não-ocidentais fazem ainda outras críticas à teologia ocidental: ela tem uma orientação excessivamente abstrata e filosófica, está organizada de maneira excessivamente sistemática, é excessivamente racional e lógica, está ligada muito de perto às ideologias políticas e às estratégias econômicas do Ocidente, e é por demais alienada da realidade, ou seja, aparentemente está inconsciente da maneira pela qual a vida é experimentada pela maior parte da população mundial. Quase que se pode imaginar esses críticos dizendo o seguinte sobre o nosso tema: “Como é que a teologia de João Calvino, um europeu ocidental que viveu há quase quinhentos anos, pode ter qualquer relevância para o século 21 – especialmente para a igreja fora do Ocidente?”
Eu não estou aqui para defender a teologia ocidental dessas acusações. Na realidade, entendo que existe alguma verdade nessas críticas, muito embora elas sejam um tanto simplistas. O que pretendo fazer nesta oportunidade é avaliar essas alegações no caso de um teólogo ocidental, a saber, João Calvino. Por verdadeiro que seja que a teologia ocidental tem pouca relevância hoje – especialmente para os cristãos do chamado “Mundo Majoritário” ou Hemisfério Sul – creio que isso não é verdade no que diz respeito à teologia de Calvino. Existe relevância, até mesmo uma relevância transcultural, em grande parte da teologia de Calvino – não somente com respeito ao seu conteúdo, mas também e especialmente com respeito a toda a sua maneira de abordar a teologia, isto é, como ele encarava a natureza e o objetivo da reflexão teológica.
Nesta oportunidade vou me limitar a considerar a relevância contemporânea de apenas dois aspectos da teologia de Calvino: (1) a maneira como ele relacionou a teologia com a piedade e (2) a maneira como ele relacionou a teologia com a sociedade. Piedade e sociedade. Porém, para aqueles que não estão muito familiarizados com o homem Calvino, eu gostaria inicialmente de apresentar uma breve síntese da sua vida.
1. A Vida de Calvino
João Calvino nasceu em 1509 no norte da França. Quando era um menino de 14 anos, ele mudou-se para Paris a fim de estudar latim e artes, obtendo os graus de bacharel e de mestre com cerca de 17 anos. Nesses anos em Paris, ele sofreu a influência do movimento reformista do final da Idade Média conhecido como humanismo cristão, um programa de reforma educacional, cultural e eclesiástica baseado no estudo de textos clássicos e cristãos antigos. Inicialmente o pai de Calvino havia pretendido que o filho realizasse estudos avançados de teologia e se tornasse um homem da igreja; todavia, devido a seus problemas recentes com a Igreja Católica, ele acabou direcionando o jovem Calvino para o estudo do direito civil. Nos cinco anos seguintes Calvino estudou com vistas ao grau de direito nas universidades de Orléans e Bourges, e paralelamente começou a estudar grego. Durante esses anos na escola de direito ele também se comprometeu com a fé protestante e começou a pregar ocasionalmente.
Após a sua formatura em direito, Calvino continuou a estudar grego (e talvez hebraico) e iniciou o que parece ter sido uma carreira acadêmica como um erudito humanista protestante – ensinando e escrevendo nas áreas de direito e teologia. Todavia, sendo um protestante em um país católico, ele foi obrigado a mudar-se com freqüência e eventualmente teve de fugir da própria França. No verão de 1536, Calvino se deteve para pernoitar em Genebra, Suíça, a caminho de Estrasburgo, Alemanha. Foi convencido por Guilherme Farel, um dos líderes protestantes de Genebra, a permanecer ali e auxiliá-lo na reforma da cidade. Calvino concordou com relutância e iniciou o seu trabalho como pastor e preletor de Bíblia. Todavia, as elevadas expectativas morais de Calvino e Farel com relação aos habitantes de Genebra, que havia abraçado o protestantismo recentemente, causaram a expulsão desses homens dois anos mais tarde, e Calvino finalmente se fixou em Estrasburgo. Ali ele trabalhou como professor universitário e pastor de uma igreja de refugiados franceses, sob a orientação de Martin Bucer, o grande reformador de Estrasburgo. Durante sua estadia de três anos nessa cidade, Calvino também publicou o primeiro de seus muitos comentários da Bíblia e se casou com a viúva de um ex-anabatista.
Em 1541 Calvino foi convidado a voltar para Genebra e ali permaneceu até a sua morte 23 anos mais tarde. Ele não ficou sem inimigos, mas grande parte da oposição política às suas reformas desapareceu em meados da década de 1550, e os últimos dez anos da sua vida foram pacíficos e produtivos. Além de pregar e ensinar, Calvino continuou a oferecer conselhos políticos aos órgãos dirigentes de Genebra, embora nunca tenha ocupado nenhum cargo público e não tenha se tornado um cidadão oficial de Genebra até 1559. Ele também persuadiu as autoridades políticas a construírem uma academia teológica em Genebra, que logo se tornou o seminário reformado mais importante da Europa. Nos últimos anos de sua vida, ele concluiu a quinta e última edição das Institutas da Religião Cristã, um sumário de teologia que havia atingido 1500 páginas. A academia de Calvino, seus escritos teológicos e suas milhares de cartas a igrejas e indivíduos fora de Genebra ampliaram a sua influência em toda a Europa, e por ocasião da sua morte em 1564 ele já era conhecido como um reformador internacional. Como alguns de vocês talvez saibam, em 1556 Calvino e seus colegas até mesmo enviaram a uma pequena colônia francesa no Brasil vários jovens de Genebra, dois dos quais se tornaram os primeiros pastores protestantes a atravessarem o Oceano Atlântico. Hoje a influência de Calvino ainda é sentida ao redor do mundo nos lugares em que se difundiu o cristianismo reformado e presbiteriano.
2. Teologia e Piedade
Voltemos agora às duas maneiras sugeridas anteriormente nas quais a teologia de Calvino é relevante para a igreja mundial no século 21. Essas duas maneiras tem a ver não tanto com o conteúdo da teologia de Calvino, mas com toda a sua maneira de fazer teologia.
Em primeiro lugar, vejamos como Calvino relaciona teologia e piedade. A primeira edição das Institutas de Calvino, em 1536, tinha o seguinte título longo e interessante – “Institutas da Religião Cristã, contendo virtualmente toda a soma da piedade e tudo o que necessita ser conhecido sobre a doutrina da salvação: Uma obra que vale a pena ser lida por todos os cristãos que têm zelo pela piedade”. Para começar, trata-se de “institutas”. Institutio em latim significa algo como “instrução básica”, “compêndio” ou “manual de instruções”. Mas um manual de que – de teologia? Não, um manual “que contém virtualmente toda a soma da piedade”, um manual “que vale a pena ser lido por todos os cristãos que têm zelo pela piedade”. Não se trata de um livro primariamente sobre teologia, mas sobre piedade. Obviamente existe muita teologia no livro. Mas para Calvino a reflexão teológica nunca é um fim em si mesma. A teologia é sempre utilizada a serviço da piedade; ela deve conduzir à piedade. Assim, a teologia de Calvino algumas vezes tem sido chamada de theologia pietatis, uma “teologia da piedade”.
Mas o que Calvino quer dizer com piedade? Na mesma sentença de abertura das Institutas, nós lemos: “Quase toda a sabedoria que possuímos... consiste em duas partes: o conhecimento de Deus e de nós mesmos” (1.1.1). Na seção seguinte, Calvino passa a dizer que, quando se trata do conhecimento de Deus, “nós não diremos que... Deus seja conhecido onde não existe religião ou piedade. . . Eu denomino ‘piedade’ aquela reverência unida ao amor a Deus que o conhecimento dos seus benefícios induz” (1.2.1). Ou então: “Aqui certamente está a religião pura e verdadeira: a fé tão unida a um sincero temor a Deus que esse temor também inclui uma reverência voluntária e leva consigo o culto legítimo que está prescrito na lei” (1.2.2). Portanto, para Calvino o verdadeiro conhecimento de Deus é um conhecimento sobre Deus que é aplicado na piedade ou devoção, isto é, em reverência, fé, amor, adoração, obediência e serviço a Deus. A teologia – o estudo de Deus, a busca de conhecimento acerca de Deus – deve evocar uma resposta de piedade em nós se queremos verdadeiramente conhecer a Deus. Pois, como diz Calvino,
Como pode o pensamento de Deus penetrar em sua mente sem que você perceba imediatamente que, visto ser obra de suas mãos, você foi... vinculado a ele por direito de criação, você deve a sua vida a ele? – que qualquer coisa que você empreende, qualquer coisa que faz, deve ser atribuída a ele? (1.2.2).
A teologia deve levar à piedade.
É exatamente assim que Calvino realiza a sua própria reflexão teológica ao longo das Institutas; as Institutas são na realidade um manual de instruções sobre a piedade. Por exemplo, ao tratar acerca de Deus, o Criador, Calvino não somente explica os detalhes da doutrina da criação, mas também exorta o leitor a “comprazer-se piedosamente nas obras de Deus” (1.14.20). O que significa confessar que Deus é o Criador dos céus e da terra? Primeiramente, diz ele, significa refletir sobre a grandeza do divino Artista mediante a contemplação de suas maravilhosas obras de arte. A criação reflete “essas imensas riquezas de sua sabedoria, justiça, bondade e poder... [e] nós devemos meditar sobre elas longamente, considerá-las em nossas mentes com seriedade e fidelidade, e evocá-las repetidamente” (1.14.21). Mas a nossa resposta deve ir além disso. Nós também devemos compreender, diz Calvino, que Deus criou todas as coisas para o bem da humanidade; devemos “sentir o seu poder e graça em nós mesmos e nos grandes benefícios que ele nos concedeu, e assim sermos levados a confiar, invocar, louvar e amá-lo” (1.14.22). Isso é piedade. Essa é uma teologia que conduz à piedade. Para Calvino, estudar a doutrina da criação não é mero exercício intelectual; envolve a pessoa inteira – coração, alma, mente e força. Como ele disse no final dessa seção acerca da criação: “Convidados pela grande doçura da beneficência e bondade [de Deus], dediquemo-nos a amá-lo e servi-lo de todo o nosso coração” (ibid.).
O mesmo se aplica à maneira como Calvino trata da predestinação, uma questão doutrinária sobre a qual ele tem sido freqüentemente mal-compreendido e violentamente atacado. O historiador americano Will Durant certa vez escreveu: “Nós sempre acharemos difícil amar o homem [Calvino] que obscureceu a alma humana com a mais absurda e blasfema concepção acerca de Deus de toda a longa e honrada história das tolices”. E o tele-evangelista americano Jimmy Swaggart certa vez afirmou: “Creio que Calvino fez com que incontáveis milhões de almas fossem para a perdição”. Todavia, a predestinação é um conceito bíblico, um conceito com o qual os teólogos ocidentais tinham se debatido por mil anos antes de Calvino. O que Calvino faz com essa doutrina é o que ele faz com toda a sua teologia – ele a relaciona com a piedade do crente. A doutrina da eleição, diz ele, em primeiro lugar acentua para nós que a salvação é sola gratia: é totalmente e inteiramente pela graça de Deus. Portanto, a doutrina da eleição deve nos humilhar, porque ela nos defronta com o fato de que não temos nenhuma contribuição a dar para a nossa salvação; ela é unicamente uma obra de Deus. Deus nos escolheu antes que nós o escolhêssemos. Em segundo lugar, essa doutrina devia levar-nos a glorificar a Deus por essa grande dádiva que ele graciosamente nos concedeu (3.21.1). Por fim, ela pode assegurar-nos do caráter definitivo da nossa salvação, pois Deus prometeu em Romanos 8 que aqueles a quem ele predestinou para a salvação nunca irão separar-se do seu amor. Como Calvino disse: “Cristo nos libertou da ansiedade nessa questão... Quando somos dele, somos salvos para sempre” (3.24.6). Calvino não pretendeu que a predestinação fosse uma doutrina aterrorizante para o crente, mas uma doutrina consoladora.
Essa teologia da piedade foi assimilada por muitas confissões reformadas na própria época de Calvino e nos anos posteriores à sua morte. A denominação à qual eu e o professor Bosma pertencemos, a Igreja Cristã Reformada da América do Norte, subscreve três dessas antigas confissões reformadas – a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort – e em todas as três está presente essa aplicação pessoal, prática e experimental das doutrinas. Por exemplo, a Confissão Belga de 1561 explica com alguns detalhes a doutrina da providência de Deus, mas também dá atenção a qual deve ser a nossa resposta a esse ensino (Art. 13). Nós não devemos ser excessivamente curiosos quanto às obras de Deus que ultrapassam a compreensão humana. Devemos adorar as decisões de Deus com humildade e reverência. Devemos reconhecer “o conforto indizível” que essa doutrina nos dá em seu ensino de que nada nos pode acontecer por acaso. E podemos repousar no pensamento de que “Deus controla os demônios e todos os nossos inimigos, os quais não podem nos ferir sem a sua permissão e vontade”. Essas são respostas de piedade!
Uma teologia de piedade é ainda mais pronunciada no Catecismo de Heidelberg, de 1563. Como um catecismo, obviamente ele foi concebido como um guia para ensinar, pregar e aprender doutrinas. Mas ele sempre apresenta as doutrinas com um propósito em mente: aplicar essas doutrinas à vida e experiência cristãs; instilar no crente um senso de consolo ou certeza da salvação; evocar no crente uma resposta de gratidão por sua libertação do pecado e da miséria espiritual. Ouça algumas das perguntas: “Como a ressurreição de Cristo nos beneficia?” (P. 45); “Como a volta de Cristo para julgar os vivos e os mortos consola você?” (P. 52); “Que bem lhe faz, todavia, crer em tudo isto?” (P. 59); “Por que ainda precisamos praticar boas obras?” (P. 86); “Por que os cristãos precisam orar?” (P. 116). A reflexão teológica no Catecismo de Heidelberg não é um exercício abstrato. Ela é relevante para a vida e a experiência do crente.
O que Calvino e as confissões fazem aqui não é de fato uma coisa nova. Essa teologia da piedade já estava evidente na tradição humanista cristã na qual Calvino foi formado. Porém, o que é mais importante, ela tem o seu fundamento nas Escrituras, o recurso básico de Calvino na elaboração da sua teologia. Quando Calvino descreve o conhecimento de Deus como um conhecimento sobre Deus que evoca uma resposta de confiança, obediência e amor por Deus, ele está simplesmente ecoando o ensino da própria Escritura. Encontramos já no Antigo Testamento que o conhecimento de Deus não é mera posse de informações sobre Deus. É o reconhecimento dos direitos de Deus sobre nós. É o reconhecimento respeitoso e obediente do poder de Deus, da graça de Deus, das exigências de Deus. Conhecer a Deus é honrá-lo e fazer o que é justo e íntegro. Como Deus diz através do profeta Jeremias:
Não se glorie o sábio na sua sabedoria... mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor, e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor. (9.23-24)
A implicação é que o Senhor se compraz no amor e na justiça não somente quando ele os pratica, mas também quando nós os praticamos. Então poderemos afirmar que realmente compreendemos e conhecemos a Deus.
O livro de 1 João no Novo Testamento dá ênfase ao mesmo ponto: “Ora, sabemos que o temos conhecido por isto: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade” (2.3-4). Portanto, a teologia da piedade de Calvino ressoa com a mensagem da própria Escritura. Pode-se realmente dizer que essa maneira pela qual ele procurou mostrar o valor das Escrituras na sua época não tem relevância em nossos próprios dias?
3. Teologia e Sociedade
Alguém poderá objetar que essa teologia da piedade soa excessivamente individualista, concentrando-se apenas na piedade pessoal. Ela não tem nada a dizer sobre a vida no mundo, o papel do cristão na sociedade, a dimensão comunitária da nossa existência? Certamente que sim para Calvino. A sua teologia da piedade é uma teologia que abrange toda a vida.
Ela realmente começa com a maneira pela qual Calvino e a tradição reformada entenderam o chamado “princípio escriturístico” da Reforma, sola Scriptura, isto é, que somente a Escritura é a nossa autoridade suprema em questões de doutrina e moralidade. O calvinismo, mais do que qualquer outro ramo do cristianismo da Reforma, entendia que isso significava tota Scriptura, isto é, que toda a Escritura é investida de autoridade, tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. Os crentes do Novo Testamento desfrutam de algumas vantagens em relação aos crentes do Antigo Testamento, mas os dois testamentos estão vinculados por um único pacto da graça. Assim, o Antigo Testamento ainda é tão plenamente uma parte da revelação normativa de Deus quanto o é o Novo Testamento. Por exemplo, no Novo Testamento encontramos o chamado “mandato missionário” de Mateus 28: “Ide e fazei discípulos de todas as nações”. Mas também existe outro mandato universal na Escritura, o chamado “mandato cultural” no Antigo Testamento: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; exercei domínio sobre ela, cultivai-a e guardai-a” (Gênesis 1 e 2). Esse mandato nunca é repetido no Novo Testamento, mas não precisa ser; ele ainda é válido. A atividade cultural – agricultura, comércio, política, educação – é uma parte da vocação do cristão tanto quanto o evangelismo.
Foi a partir dessa perspectiva das Escrituras que se desenvolveu grande parte da teologia social de Calvino. Para ele, o modelo básico da sociedade se encontrava no Antigo Testamento, na comunidade de Israel. Essa piedade se estendia a todas as dimensões da vida, tanto públicas quanto particulares. Para Calvino, portanto, a reflexão teológica nunca fica limitada ao indivíduo ou apenas às questões “espirituais”. Ela é uma reflexão sobre como toda a Escritura se relaciona com toda a vida.
Para ilustrar isto, quero recorrer a três aspectos do pensamento social de Calvino: sua reflexão cristã sobre a ordem política, sobre três questões econômicas e sobre a educação.
3.1. Política. No que se refere à ordem política, Calvino reconhecia a igreja e o estado como esferas distintas que deviam cooperar estreitamente para edificar uma sociedade cristã. Portanto, ao contrário dos anabatistas daquela época, ele defendia um elevado grau de envolvimento por parte dos cristãos na vida política. “Ninguém deve duvidar que a autoridade civil é uma vocação”, diz Calvino, “não somente santa e legítima diante de Deus, mas também a mais sagrada e de longe a mais honrosa de todas as vocações em toda a vida dos homens mortais” (Institutas 4.20.4). Os cristãos devem honrar as autoridades como “ministros e representantes de Deus” (4.20.22). Elas devem orar pelos magistrados civis e obedecê-los, até mesmo os tiranos, a menos que tal obediência resulte em uma desobediência direta da vontade de Deus. E a igreja tem a responsabilidade profética de advertir as autoridades quando elas erram e exortá-las a cumprirem os seus deveres. Em seu comentário de Amós 8.4, Calvino escreve: “Com freqüência os governan- tes são culpados de muitas coisas; essa é a razão pela qual os profetas se voltam contra eles de maneira tão contundente e rigorosa”. Os porta-vozes proféticos de hoje, diz Calvino, são primariamente os ministros da igreja. É seu dever clamar contra toda injustiça praticada pelo estado, particularmente no que se refere ao tratamento dos pobres e dos fracos.
Qual é o dever dos governantes civis? Acima de tudo reconhecer que “foram ordenados ministros da justiça divina”. O seu tribunal é “o trono do Deus vivo” e eles são “representantes de Deus” (4.20.6). Como tais, é seu dever promover a justiça, a segurança e a paz na sociedade, e especialmente defender os pobres e os fracos contra os ricos e poderosos. O Salmo 82.3 diz: “Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para com o aflito e o desamparado”. Em seu comentário desse salmo, Calvino o aplica ao estado: “Um governo justo e bem-regulado se distinguirá por preservar os direitos dos pobres e dos afligidos”.
Mas também é tarefa do governo, Calvino acreditava, promover e proteger a verdadeira religião na sociedade. “Os santos reis”, ele escreve, “são grandemente exaltados nas Escrituras porque restauraram o culto a Deus quando o mesmo estava corrompido ou destruído, ou cuidaram da religião para que por meio deles ela pudesse florescer pura e incontaminada” (4.20.9). Aqui, evidentemente, Calvino mostra ser um homem do seu tempo, refletindo mil anos de busca de um estado cristão no Ocidente. Porém, o que devemos observar é não tanto as conclusões a que ele chega aqui, mas o fato de que ele está se esforçando no sentido de formular uma abordagem conscientemente bíblica e cristã da dimensão política da sociedade.
3.2 .Economia. Como outros líderes da Reforma, Calvino rompeu com a tradição medieval de elevar a “vida contemplativa” acima da “vida ativa” do trabalho diário. O trabalho, diz Calvino, é uma atribuição de Deus pela qual os indivíduos servem ao bem-comum. Deus nos criou não somente como indivíduos, mas como indivíduos em comunidade. Dependemos uns dos outros e devemos servir uns aos outros com os diferentes dons que nos foram dados. Portanto, todas as formas de trabalho são de igual valor e são igualmente agradáveis a Deus se beneficiam de algum modo a comunidade e não contradizem a Palavra de Deus. Não trabalhar quando se tem a capacidade de fazê-lo é algo contrário à Palavra de Deus. Mas, ao mesmo tempo, não proporcionar trabalho para aqueles que são capazes também é errado. Assim sendo, Calvino e a cidade de Genebra iniciaram um programa de obras públicas para os milhares de refugiados que estavam afluindo para aquela cidade.
Calvino também aplicou a perspectiva do evangelho à questão dos salários. Para o empregado, o trabalho deve ser entendido como algo feito em primeiro lugar não pelo dinheiro, mas para a glória de Deus. De fato, as pessoas não têm realmente um direito à remuneração; qualquer salário que recebemos é na realidade uma expressão da graça de Deus para conosco – gratuita, imerecida. Porém, do ponto de vista do empregador, o salário deve ser justo. Afinal, o que está ocorrendo é uma dispensação da graça divina e o empregador é um instrumento desse processo. Na verdade, para um empregador cristão, pagar o salário mínimo legal não é suficiente. Como disse Jesus, devemos sempre fazer aos outros como queremos que nos façam.
Finalmente, Calvino fez uma nova abordagem à usura ou à cobrança de juros. A igreja havia proibido toda usura na Idade Média, muito embora algumas pessoas continuassem a praticá-la. Todavia, Calvino argumentou que a Bíblia não proíbe toda forma de usura. As proibições bíblicas contra a mesma precisam ser lidas em seu contexto. A usura foi proibida entre os israelitas da velha dispensação, diz Calvino, porque lhes era fácil realizar negócios sem ela. Mas aquelas circunstâncias mudaram em nossos dias. E a instrução de Jesus, “emprestai, sem esperar nenhuma paga” (Lucas 6.35), visava orientar o nosso relacionamento com os pobres, não com todas as pessoas. Seja como for, Calvino acreditava que quando se tratava de emprestar dinheiro a juros, o nosso comportamento devia ser governado acima de tudo pela lei bíblica do amor. Somente porque uma coisa é legal, isso não a torna amorosa ou justa. Além disso, uma vez mais, nunca devemos fazer algo que não esteja de acordo com a Lei Áurea.
3.3 .Educação. Para Calvino, a responsabilidade principal pela educação recaía sobre a igreja, e não sobre o estado, o que contrariava a tendência geral da Reforma no sentido de transferir a educação da igreja para o controle do estado. Sob a sua influência, os mestres eram nomeados pelos pastores da cidade, deviam submeter-se à confissão de fé de Genebra e estavam sujeitos à disciplina eclesiástica. Calvino chegava a considerar o “mestre de teologia” como um quarto ofício da igreja, ao lado do pastor, do presbítero e do diácono.
O programa educacional que Calvino ajudou a implantar em Genebra tinha um forte componente humanista, isto é, uma grande ênfase no estudo de antigos textos gregos e romanos. Por quê? Em primeiro lugar, porque para Calvino o propósito básico da educação superior, pelo menos, era preparar homens para o ministério do evangelho ou para o serviço público. Essas profissões requeriam pessoas que pudessem pensar bem, falar bem e escrever bem. Quem poderia oferecer um melhor modelo para isso senão os grandes pensadores, oradores e autores do mundo antigo?
Porém, Calvino se voltava para os clássicos por outras razões além do pensamento claro e da retórica refinada. Ele também acreditava que havia verdades a serem encontradas nos antigos autores não-cristãos, verdades que poderiam ajudar-nos a compreender o mundo de Deus e a Palavra de Deus. Como ele diz nas Institutas:
Sempre que nos defrontamos com essas questões nos escritores seculares, que essa admirável luz da verdade que neles brilha nos ensine que a mente do homem, embora decaída e pervertida de sua integridade, no entanto está revestida e ornamentada com os excelentes dons de Deus. Se consideramos o Espírito de Deus como a fonte única da verdade, não rejeitaremos a própria verdade nem a desprezaremos onde quer que ela se manifeste, a menos que desejemos desonrar o Espírito de Deus. (2.2.15)
É por isso que Calvino fazia os estudantes de sua academia lerem antigos autores não-cristãos como Virgílio, Cícero, Ovídio, Sêneca, Lívio, Xenofonte, Políbio e Homero. Na realidade, o professor de grego da academia não ensinava o Novo Testamento grego (isso era feito pelo professor de teologia), mas textos antigos de Platão e Aristóteles sobre ética. Evidentemente, o verdadeiro conhecimento de Deus, diz Calvino, só é possível quando a pessoa foi regenerada pelo Espírito Santo e vê Deus revelado nas Escrituras. Porém, usando os “óculos” das Escrituras, podemos prosseguir para o aprendizado do mundo não-cristão e encontrar muitas coisas verdadeiras e úteis no sentido de preparar os crentes para o serviço cristão. A lente da revelação da Palavra de Deus nos ajuda a focalizar bem a verdade que se encontra no mundo de Deus.
Conclusão
Como, pois, a teologia de Calvino é relevante para o século 21? Não em primeiro lugar por causa do seu conteúdo. Embora certamente haja muito o que se aprender desse conteúdo, existem também aspectos em que é limitada a sua utilidade para o mundo moderno. A relevância da teologia de Calvino reside, acima de tudo, na maneira como ele aborda a tarefa teológica, naquilo que ele considera o propósito da teologia e em como ele empreende a elaboração da teologia. O método de Calvino pode servir como modelo para os teólogos cristãos atuais pelo menos de três maneiras.
Primeiramente, a sua teologia é bíblica. Ela reconhece a Escritura como a Palavra de Deus inspirada e infalível, investida de autoridade suprema para todo o pensamento teológico e a vida cristã. Não somente uma parte da Escritura, mas toda ela, Antigo e Novo Testamento. Como tal, a teologia de Calvino inicia onde começa o Antigo Testamento, com a doutrina da criação. Visto que a salvação é de fato a restauração da criação, os cristãos são conclamados não a evitarem este mundo ou a fugirem dele, mas a servirem a Deus como seus agentes de restauração e reforma neste mundo.
Em segundo lugar, a teologia de Calvino é prática, isto é, está sempre voltada para a piedade cristã. Para ele a teologia não pode ser simplesmente um exercício teórico. Ela não é abstrata, especulativa ou altamente filosófica. Ela nunca é um fim em si mesma. Antes, a teologia sempre deve se relacionar com a vida e a experiência cristã. O conhecimento sobre Deus deve levar ao conhecimento de Deus, isto é, uma resposta a Deus de reverência, amor, obediência e confiança.
Finalmente, a teologia de Calvino é holística. Para ele, o evangelho se dirige não somente às almas ou a pessoas individuais ou às chamadas questões “espirituais”. Ele se dirige à pessoa integral e a todos os aspectos da vida e da sociedade – coisas como exercer um cargo público, praticar desobediência civil, riqueza e pobreza, trabalho, salários, usura, educação, casamento e vida familiar. É por essa razão que um estudioso denominou Calvino não somente um reformador, mas um “revolucionário construtivo”.
Em suma, a teologia de Calvino nos faz lembrar a fonte (a Escritura), o propósito (a piedade) e o escopo (toda a vida) do trabalho teológico. Parece-me que esses lembretes são tão relevantes para a tarefa teológica em nossos próprios dias e em nosso mundo quanto o foram na Genebra de Calvino há quase 500 anos.
Referência
* Professor de Teologia Sistemática no Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan. Palestra proferida no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper no dia 28 de agosto de 2003. Texto traduzido por Alderi Souza de Matos.
Fonte:
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