Carta a Rubem Alves
"As certezas andam sempre de mãos dadas com as fogueiras...” [Rubem Alves].
Ah,
querido Rubem, se você ainda estivesse entre nós, certamente notaria
como essa sua assertiva, escrita há algumas décadas, continua sendo tão
atual, infelizmente. Lembrando nosso amigo Voltaire, parece que
continuamos nos dilacerando "por causa de alguns parágrafos", sendo
piores que os tigres, que dilaceram senão para comer. Mas, sabe: o
problema, talvez e muito ‘talvezmente’, não seja nutrir determinadas
certezas, se me permite uma leve variação de ponto de vista, pois
existem convicções (ideológicas, de fé e vida) que, para nós, são tão
caras que arriscamos tomá-las como "certezas". Então, não sei, caro
mestre, se "todas" as espécies de certezas conduzem a fogueiras - talvez
a maioria delas, sim. É que teimosa e relutantemente ainda acredito na
profundidade de certos valores (não consigo transvalorá-los todos, como
pretendeu nosso outro bom amigo, Nietzsche), como o amor, por exemplo.
Mas será que o amor pode ser chamado de certeza, ou mesmo de "valor"?
Acho que aqui poderíamos concordar que o amor, se certeza for, é a mais
incerta que existe, pois não oferece controle nem garantia de nada. Pela
fé, por exemplo, sinto-me convicto sobre o amor de Deus pelo mundo; mas
não há, nem nunca houve, garantias de que o mundo abraçará ou
compreenderá o amor de Deus, às vezes sinto o contrário: que o mundo, ou
seja, nós-mundo nos tornamos antítese desse amor, especialmente quando
fazemos coisas horríveis, como sacrificar pessoas, "pelo amor de Deus",
ou por amor à sua "verdade". Ironia das ironias: o Senhor amou o mundo,
mas o mundo escolheu pregá-lo numa cruz! E ainda prosseguimos numa
crucificação sem fim...
É, caro Rubem, as coisas
aqui andam muito estranhas, especialmente nesse lugar mais
deslocalizado possível chamado Facebook, onde algumas linhas ou imagens
podem gerar uma tempestuosa indisposição entre pessoas, às vezes entre
amigos, ou até mesmo entre irmãos. Seria por efeito das “certezas”,
sobre as quais você falou, ou pela teimosia orgulhosa em não admitir
nossas fraquezas, pontos falhos ou cegos? E como poderíamos falar de
certezas senão por determinados pontos de vista? E como separá-las das
fogueiras, se não mais toleramos os pontos de vista uns dos outros? Que
faremos, pois: abolimos as certezas? E como fazer isso sem, de novo,
aniquilar as pessoas? O relativismo, no fim das contas, parece mesmo ser
um absolutismo invertido. Talvez se nos esvaziássemos, pelo menos, da
pretensão de enxergar sempre melhor e mais acuradamente que os outros,
da pretensão de preencher todos os espaços vazios, da pretensão ao
conhecimento absoluto, a coisa já melhoraria muito, e as “certezas” já
não seriam mais tanto um problema.
Quero então
tentar uma nota diferente. As certezas que nutro, pela relatividade de
meus pontos de vista, do lugar a partir do qual vejo e falo, são e serão
decididamente incertas. E não existirão mais para achatar pontos de
vista de outrem, pois, se não são capazes de conversar civilizada e
respeitosamente, mesmo que em tom declaradamente dissonante, é melhor
que permaneçam caladas. Desisto de tentar vencer sempre, pois um mundo
onde todos querem a vitória (de seu partido, ideologia, visão
doutrinária, religião ou nação), só pode ser um mundo em guerra e, por
conseguinte, fadado à destruição. Quero viver uma vida em que as perdas
sejam jubilosamente acolhidas como oportunidades, e as vitórias
eventuais sejam celebradas humilde e humanamente com poesia e canto, e
não com marchas triunfais. Que eu aprenda a abdicar de uma das mais
tentadoras para mim: a marcha triunfal do pensamento. Pois ela é tanto
triunfal, quanto inquisitória; tanto triunfal, quanto excludente.
Nunca
me esquecerei de algo que você disse sobre os teólogos no prefácio ao
seu livro “Por uma teologia da libertação”. Você disse que alguns deles
se parecem com o galo: “Acham que se não cantarem direito, o sol não
nasce: como se Deus fosse afetado por suas palavras. E até estabelecem
inquisições para perseguir galos de canto diferente, e condenam outros a
fechar o bico, sob pena de excomunhões”. Isso, porque “todos estão de
acordo em que existe uma partitura original, revelada, autoritativa, e
que a tarefa da teologia é tocar sem desafinar... Qualquer que seja a
aposição, todos afirmam que existe um único jeito de tocar a música”.
Você sabia o que estava dizendo, Rubem, pois enfrentou essa fúria
galinácea na pele, não foi? E, como dizia Voltaire, por seus próprios
“irmãos”! Não deve ser nem um pouco fácil ser apunhalado por gente da
própria família, que pela frente diz “meu amado”, e pelas costas te
condena como liberal, herege ou coisa que o valha, e não me admira que
tenhas evitado para si o rótulo de “teólogo” depois disso (eu até acho
que teria feito o mesmo). Por essa razão, me junto, sem querer me
comparar, a você em prosseguir tentando “inventar outros cantos, sabendo
que o sol não vai se zangar e vai nascer sempre, no mesmo lugar”.
Gostei também da expressão que você usou para traduzir isso: “Graça”.
Permita-me então encerrar transformando suas palavras em uma oração,
dirigida agora especialmente a nossos camaradas teólogos/as:
Que
produzamos novos cantos teológicos, com coragem e responsabilidade, com
inventividade e fidelidade, mas sem medo de desafinar, conscientes de
que “a bondade de Deus continua a mesma, sempre, independente de nossas
afinações ou desafinações. Ele [o sol] nem nasce melhor quando estamos
afinados, e nem nasce pior quando estamos desafinados... Temos,
portanto, a liberdade de fazer o que quiser... Eu não suportaria pensar
que meu pensamento é tão poderoso que, caso eu pense errado, Deus vai
ficar torto”.
Jonathan
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